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O Diário de Mogi

Trágica, Trono de Sangue faz rir com medo

28.5.1992  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 28 de maio de 1992.   Caderno A – capa

Adaptação de Antunes empareda Macbeth e resulta em um espetáculo de impacto


VALMIR SANTOS 

“Eu já tenho cheiro de naftalina, clorofórmio?”, pergunta, com estranhamento, o diretor Antunes Filho. De fato, ele exala contemporaneidade. “Trono de Sangue”, sua adaptação para “Macbeth”, de Shakespeare, estreou semana passada. Traz para o palco uma ação impactante da mais sinistra e sanguinária tragédia do autor inglês. A história de Macbeth a usurpar o trono do rei Duncan é envolta em suspense cinematográfico.

Tragédia perversa na definição de Antunes, “Trono” é horror sussurrante. Uma tensão explícita acompanhada de divertimento, mesmo que trágico. O pulso do espetáculo fica por conta do ator Luís melo, um Macbeth animalesco, visceral. Ao seu lado, a ex-Chapeuzinho Vermelho em “Nova Velha Estória”, Samantha Monteiro, é a víbora e frágil lady Macbeth.

No palco de tablado vermelho, estilo elizabetano, atuam ainda 16 atores, a movimentação deles remete ao Coro grego. Como no enterro do rei Duncan, onde se juntam para conduzir o caixão entoando canto japonês ao ritmo de sapateiros. A cena final é eletrizante. Sem sua Lady, que perde a razão e morre, Macbeth se vê isolado, travando batalha com o exército que quer recuperar a Justiça. O usurpador é devorado pelos soldados ao som de heavy metal.

 

Trono de Sangue – Com Luis Melo, Samantha Monteiro e grupo Macunaíma. De quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 256-2281). Ingressos: Cr$ 20 mil e Cr$ 10 mil (comerciários), de sexta a domingo; Cr$ 15 mil e Cr$ 7,5 mil (comerciários), quarta e quinta. Duração: 1h30. Até 26 de junho.

 

Ator virou mobília, diz diretor

Antunes Filho, 62 anos. Um dos diretores mais respeitados do teatro nacional, sempre marcado pela ousadia de experimentar, de reinventar o fazer teatral, ele continua sustentando sua única motivação cênica: o ator.

“Hoje o ator virou mobília”, sentencia. Para Antunes, quem manda no palco é o ator, imbuído de sensibilidade, manifestando sua poética real. “Diretor que não sabe trabalhar ator não é diretor, é design”, alfineta.

Gesticulando, preparando fumo no cachimbo e bastante agitado depois da semana de estréia de “Trono de Sangue”, Antunes recebeu o Diário para entrevista exclusiva, segunda-feira passada, no Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc, São Paulo, onde coordena diversos núcleos de criação, com cursos de montagem, iluminação, cenografia, e outros elementos de teatro.

 

Diário – Como foi o processo de criação de “Trono de Sangue”, realizado paralelamente com as montagens de “Nova Velha Estória” e “Paraíso Zona Norte”?

Antunes Filho – A adaptação de “Macbeth” começou a ser trabalhada há sete meses. Os atores participaram de vários laboratórios. As pesquisas foram voltadas, por exemplo, para a maneira de andar dos séculos 16 e 17. Minhas peças são atemporais. Brinco com os estilos da época nos contextos psicopolíticos, psicossociais e psicoeconômicos. Há também pesquisas realizadas em livros. A coisa mais fundamental da vida é o imaginário. A verdade do imaginário é muito mais profunda que a verdade histórica.

 

Diário – Apesar de clássicos, o Sr. anunciou uma montagem antimuseu, mais uma vez jogando com experiências cênicas.

Antunes – “Trono” resgata a cultura do ator brasileiro. É, antes de tudo, uma homenagem que presto ao ator de costumes Jaime Costa, pela atuação em “Caixeiro Viajante”, e à atriz Glauce Rocha, a única que vi interpretando Shakespeare como se fosse ela mesma; não recitava, brotava do seu organismo. Por outro lado, a peça é uma ruptura, porque faço uma experiência estética onde, além de usar o cinema, recorro à força centrifuga. Tiro o ator do centro do palco e coloco nas paredes, abrindo a cena. Uma espécie de poética da parede. É como o momento que o Brasil atravessa, vivemos emparedados, com medo, receio.

 

Diário – Explica um pouco como se dá essa valorização do ator.

Antunes – Diretor de teatro tem que saber lidar com ator. Quem manda no palco é o ator. O diretor deve apenas ajudá-lo a encontra sua poética. Hoje, os diretores são verdadeiros filhotes da ditadura no palco. Tenho fama de ser o sacristão, o ditador. Mas é o contrário. Só porque quero disciplina no CPT muitos confundem ditadura. Exijo aspectos essenciais para a constituição de liberdade. Se não tenho base, um sistema, então tenho libertinagem.

 

Diário – Nas últimas entrevistas o Sr. tem falado bastante do ator comediante. Não poupa sequer críticas aos atores de novela.

Antunes – Para mim, existem três categorias de ator. O primeiro é o de comédia de costumes, uma corruptela do que se vê nos programas de humor na TV. O segundo é o ator dramático, aquele que fica confinado ao texto e não vai além do que o autor escreve. E, por fim, o comediante. É aquele que pesquisa, propõe novos modelos culturais, não vive de pré-concepções. O ator comediante está afastado de tudo, fica acima da comunidade humana. Olha de cima e desce para fazer teatro, contar histórias, ajudar os homens. Ele prefere a sensibilidade à emoção.

 

Diário – Por que uma nova visita a Shakespeare?

Antunes – Só montei Shakespeare porque é um autor da minha época. Não faria para cultuar o museu shakespeariano. Faço um Shakespeare brasileiro, de 1992.

 

Diário – Qual a avaliação que o Sr. faz das peças montadas atualmente?

Antunes – Quando vou ao teatro, nunca entendo o que os atores estão fazendo; quando entendo o português, não compreendo o que falam. Meu teatro procura exatamente entender e compreender. Hoje, a molecada vem assistir “Trono” e sai dizendo: “Puxa, nunca pude imaginar que um clássico fosse assim, vivo”.

 

Diário – E de quem é a culpa deste entendimento incompreensível?

Antunes – Um pouco dos diretores, que não vão a fundo em nossas raízes e terminam fazendo clipe com os atores. Hoje, o ator virou mobília no palco. O clipe é uma linguagem da forma pela forma, são tensões visuais sem raízes. Já fiz isso em “Romeu e Julieta”, utilizando uma sintaxe do clipe. Agora, não posso ver um clipe na TV que acho a coisa mais chata, mais burra e mais cacete do mundo, muito repetitiva. Aliás, o pós-modernismo no Brasil se caracteriza por uma época burra. Enquanto isso, na Europa, ele recorreu ao lúdico, buscando sua tradição verdadeira. Aqui, ao contrário, vive-se atrás da cultura estrangeira, da citação pela citação, e você nunca sabe onde vai dar. Se eu assinar um espetáculo assim, tipo Bia Lessa, estou liquidado como diretor. Ela pode fazer isso, eu não.

 

Sob a direção de Adamilton Andreucci Torres, 38 anos, o Tumc optou por levar o teatro às ruas e praças públicas na passagem dos seus dez anos de existência (veja o box). “O Capeta de Caruaru” encerra a trilogia iniciada em 89 com “A Cara Nossa de Cada Dia”, seguida por “Cenas em Cena”, apresentada na UMC no final do ano passado, com participação especial do grupo folclórico Meninos da Porteira, de Sabaúna.
Por l hora e 20 minutos a praça Coronel Almeida serviu de território-limite de Caruaru.   O   cenário, resumido num painel de pano de cerca de oito metros de largura, lembrando o formato de uma casa, traz os indícios da caatinga nordestina: o sol abrasador, o cacto ressecado, a mula esquelética e a pequena igreja, símbolo da fé daqueles que só deixam   o cariri no último pau-de-arara.
O prefeito António Cipriano e o padre Damião — que também passam, respectivamente, pelo beberrão Chico e o caipira Piu — são o pivô da história. A troca de personagens confunde os moradores. Dona Cosma está preocupada com o marido que transou com uma égua, dando origem ao cavalo de cabeça de gente. Este se apaixona pela moça que não pára de crescer e já está com a cabeça ao nível das telhas da casa. O pai, António das Almas, reivindica fervorosamente, junto à prefeitura local, um guindaste para que a filha possa se locomover. Eis os fenômenos absurdos que indicam a presença do capeta em Caruaru. Tudo, é claro, pincelado pelo humor escrachado dos nordestinos, profundos amantes da superstição.Um cavalo provido de cabeça humana casou-se ontem com uma moça acometida pela doença do coqueiro — mais para girafa —, filha do cangaceiro António das Almas. O enlace aconteceu em frente à Igreja Matriz. Antes das pazes, porém, houve muita confusão. Quem passou pela praça Coronel Almeida a partir das 12 horas viu de perto as armações de uma bruxa escatológica tentando azucrinar o pacato cotidiano de uma cidade de Pernambuco. Eram os 18 integrantes do grupo Teatro da Universidade de Mogi das Cruzes, o Tumc, encenando “O Capeta de Caruaru”, de Aldomar Conrado.Sob a direção de Adamilton Andreucci Torres, 38 anos, o Tumc optou por levar o teatro às ruas e praças públicas na passagem dos seus dez anos de existência (veja o box). “O Capeta de Caruaru” encerra a trilogia iniciada em 89 com “A Cara Nossa de Cada Dia”, seguida por “Cenas em Cena”, apresentada na UMC no final do ano passado, com participação especial do grupo folclórico Meninos da Porteira, de Sabaúna.Por l hora e 20 minutos a praça Coronel Almeida serviu de território-limite de Caruaru.   O   cenário, resumido num painel de pano de cerca de oito metros de largura, lembrando o formato de uma casa, traz os indícios da caatinga nordestina: o sol abrasador, o cacto ressecado, a mula esquelética e a pequena igreja, símbolo da fé daqueles que só deixam   o cariri no último pau-de-arara.O prefeito António Cipriano e o padre Damião — que também passam, respectivamente, pelo beberrão Chico e o caipira Piu — são o pivô da história. A troca de personagens confunde os moradores. Dona Cosma está preocupada com o marido que transou com uma égua, dando origem ao cavalo de cabeça de gente. Este se apaixona pela moça que não pára de crescer e já está com a cabeça ao nível das telhas da casa. O pai, António das Almas, reivindica fervorosamente, junto à prefeitura local, um guindaste para que a filha possa se locomover. Eis os fenômenos absurdos que indicam a presença do capeta em Caruaru. Tudo, é claro, pincelado pelo humor escrachado dos nordestinos, profundos amantes da superstição.

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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