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O Diário de Mogi

Geraldo Thomas cai na farsa

20.1.1994  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 20 de janeiro de 1994.   Caderno A – capa


Trilogia B.E.S.T.A., que inicia com “The Flash and Crash Days”, inaugura uma fase menos expressionista

VALMIR SANTOS 

Geraldo Thomas mudou. O diretor brasileiro que sacramentou o teatro essencialmente de imagem em nossos palcos, na contramão de boa parte da crítica e até mesmo do público, começou a metamorfose em 1991, com “The Flash and Crash Days”, que reestreou semana passada em São Paulo. “Império das Meias-Verdades” a montagem do ano passada consolidou a nova perspectiva cênica de Thomas: a comicidade, a farsa.

Sobrou pouco da assepsia das montagens anteriores (“M.O.R.T.E.”, Trilogia Kafka ou “Electra Com Creta”, por exemplo). Hoje, quem assiste a uma peça de Thomas sai com menos interrogações na cabeça. É como se o diretor tivesse rompido a “quarta parede”.

Não que o encenador e também autor queira que o público entenda seus espetáculos. Há toda uma simbologia em jogo nas construções teatrais de Thomas. O que se depreende da fase atua é a necessidade de um diálogo mais direto com o espectador. E a via de um ator cômico, sem dúvida, é a que proporciona melhor resultado.

A “The Flash…” de 1991 não é a mesma que está em cartaz no Sesc Pompéia. O próprio Thomas aponta o humor mais acentuado nas personagens vividas por Fernanda Torres, mãe e filha. O embate das duas no palco, que outrora carregava no tom de tragédia, agora surge fanfarrão.

“The Flash…” já não é somente “exercícios interpretativos”. É possível delinear um enredo. No palco, as Fernandas também são mãe e filha. Há uma clara disputa de espaço, de poder. Qual mãe nunca pensou, em um instalo de ira, dar um sumiço em sua filha? E qual filha não desejou fazer sua mãe desaparecer do Planeta? Mas não é fácil. Impossível afogar a afetividade; o cordão umbilical dificilmente se rompe ao longo da vida.

Então, a peça com as Fernandas se passa nos interstícios da imaginação. Durante cerca de uma hora e meia, o que se vê no palco são movimentações estranhas, desconexas. O cenário traz um vulcão. Fernandona senta sobre seu topo para pedir água. A Fernandinha-sem-cabeça não se conforma em ver sua mãe e os “anjos urubus” jogando seu crânio praláepracá.

As histórias de Thomas são um convite à decifração. Às vezes, não se tem que entender nada mesmo. O estranhamente, para o encenador, também faz parte do jogo. Ele é muito criticado pela “falta de emoção”. Realmente, as peças anteriores eram de uma frieza irritante.

Mas o polêmico Thomas dos anos 90 é diferente. Prova disso é a trilogia – mais uma das suas – B.E.S.T.A., (Beatificação da Estética Sem Tanta Agonia), que compreende “The Flash…”, “Império…” e “UnGlauber”. A segunda peça será revista no Sesc Pompéia, a partir da próxima semana, e a inédita “UnGlauber”, título provisório, faz sua estréia mês que vem.

“Império das Meias-Verdades” é o espetáculo de Thomas onde os atores ficam mais à vontade em cena. Fernanda Torres, Edílson Botelho, Ludoval Campos e Luiz Damasceno estão hilários. Em “Império…”, Thomas assumiu o “working in progress”, fazendo alterações, às vezes radicais, de uma apresentação para outra. No menu, a origem do homem – Adão e Eva – , a partir de um prisma existencial do homem moderno.

Sobre “UnGlauber”, palavra que em alemão significa “descrente”, Thomas diz que trata da falta ou domínio do ator na arte de interpretar. Se passa no camarim, onde os atores questionam técnicas que vão de Platão a Brecht e Stanislavski. “UnGlauber”, que para a estréia internacional em abril, na Dinamarca, será intitulada “Hammering From The Blind Pig” (Marteladas de Um Porco Cego), contará com a atriz Vera Zimmerman no elenco.

O “Glauber” do título provisório não é por acaso. A peça também pode ser considerada anti-Glauber Rocha, em referência à geração posterior à do cineasta propulsor do Cinema Novo, marcada pela descrença. A desmitificação do processo criativo de Thomas é uma boa novidade para o teatro nacional. Afinal, ele é um mestre da cena, sob vaias ou aplausos.

 

The Flash and Crash Days – De quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, tel. 864-8544). CR$ 2 mil (visitantes); CR$ 1,8 mil (usuários com carteirinha do Sesc) e CR$ 1 mil (comerciários). Até 23 de janeiro. Império das Meias-Verdades – De 26 a 30 de janeiro. UnGlauber – De 5 a 27 de fevereiro. Texto e direção: Gerald Thomas. Com a Companhia de Ópera Seca.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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