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O Diário de Mogi

“Gilgamesh” é poesia e celebração

8.6.1995  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 08 de junho de 1995.   Caderno A – capa

 

 

Antunes Filho encena epopéia com espiritualidade e até certa licenciosidade spilberguiana; Melo faz interpretação tocante

 

 

VALMIR SANTOS 

 

A montagem de “Gilgamesh” (pronuncia-se guilgâneshi) confirma mais uma vez o trabalho seminal do teatro de Antunes Filho. Ao traduzir em cena a poesia do povo sumério, numa das lendas mais antigas da humanidade, o diretor consegue se reportar ao ponto-zero da história com um pé devidamente fincado nos dias que correm.

É um convite à reflexão sobre tudo que se fez até aqui, neste fim de milênio. Quando Gilgamesh, o rei de Uruk, “o primeiro herói trágico da história”, parte em busca da imortalidade, do conhecimento, é exatamente o desespero humano diante da morte inexplorável. A impotência diante da determinação do divino.

Ao mesmo tempo, demonstra a sagacidade da existência humana. Vários foram os contratempos, os embates com as leis que regem a natureza (muitas vezes ignorando-as), e eis que o barco chegou até aqui. E prossegue.

Nas mãos de Antunes, porém, “Gilgamesh” transcende a superfície. Em que pese o olhar universal do texto, o diretor do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc coloca o homem-indivíduo em cena.

E se permite a espiritualidade inerente. O espetáculo começa e termina com uma evocação à dança rodopiante dos dervixes. O efeito é hipnotizante, como se viu ano passado, em São Paulo, na apresentação de um grupo da Turquia no Festival Internacional de Artes Cênicas. A dança ritual prepara o espectador para o que virá.

Aliás, tudo é celebração. As cenas sempre culminam em cartase para retomar, logo em seguida, a introspecção. Neste crescendo e desmanche, a narrativa pulsa. A adaptação de Antunes segue basicamente os passos da epopéia. As repetições do texto original, uma característica dos sumérios, não foram totalmente evitadas.

Como o fez com Joaquim (“Vereda da Salvação”) ou Macbeth (“Trono de Sangue”) as duas peças anteriores, Melo arrebata. Consegue dar uma dimensão trágica e ao mesmo tempo poética ao seu Gilgamesh. As porções “dois terços deus e um berço homem”, como reza o texto babilônico, aparecem na interpretação.

A visceralidade e a delicadeza co-habitam o personagem. A cena mais emocionante é aquela em que Gilgamesh depara com seu grande amigo Enkidu morto. A música cantochão, a pausa sob medida de Melo, nu, chorando abraçado ao corpo do companheiro de aventuras, pertence à galeria das imagens inesquecíveis do teatro.

O distante

Pelo menos mais dois atores do grupo Macunaíma se destacam. Luis Furlanetto, como Deus Anu e Utnapishitm, o Distante. Furlanetto é a veia cômica, leve, da montagem. Rosane Bonaparte, como Ishtar, a Deusa do Amor, confere originalidade, a começar pela voz.

Já a atuação de Bruno Costa como Enkidu, personagem fundamental da história, sucumbe à força de Melo. A animalidade de Enkidu não aparece. Para quem deveria ser um papel marcante.

Os demais atores do elenco oscilam entre certa falta de experiência de palco, ou de processo no CPT (caso de Edson Montenegro) e a segurança que respalda (Geraldo Mário, Raquel Anastásia e Sandra Babeto).

Cenografia e figurinos de J.C. Serroni e equipe trazem pinceladas de despojamento. O palco praticamente deserto (exceção de uma mesa à esquerda), projeta um fundo infinito. Neste espaço vazio, cruzam-se os personagens, alguns luxuosamente paramentados, por vezes emoldurados em caixas. A transição da imobilidade, do isolamento, à movimentação orgânica, corporal, é bem explorada.

A maior surpresa para quem assiste a “Gilgamesh” está nos efeitos especiais utilizados nas cenas do monstro Humbaba e do Touro Celestial. Há uma licenciosidade spilberguiana por parte de Antunes, com direito a faíscas, fumaças. Trata-se, porém, de algo patético, como que ironizando a tecnologia dos nossos tempos, contrastando com a antiguidade.

Com a montagem, Antunes enveredou por uma dramaturgia resultante do trabalho de ator. Isso é novo. Quem sabe, a próxima peça do CPT não nasça exatamente daí.

Gilgamesh – Adaptação e direção: Antunes Filho. Com grupo Macunaíma (Roberto Audio, Adriano Costa, Alfredo Penteado, Lianna Mateus etc). De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 (quinta, sexta e domingo) e R$ 20,00. 140 minutos. Até dia 27 de agosto.

“Nem Isto, Nem Aquilo” peca pelo clichê em cena

A Carpie’Dien Produções Artísticas costuma exceder no visual dos seus espetáculos. No infantil “O Encanto de Tiemim”, de Nelson Albissú, cenários e figurinos carregavam no tom. Em “Nem Isto, Nem Aquilo, Fique Tranquilo”, texto a quatro mãos de Albissú e Christiane Manara, não é diferente.

Parece que o mais importante é a forma, a estética. Já o conteúdo… A trama de “Nem Isto, Nem Aquilo…” mistura tudo, do grand guignol ao terrir, para tentar envolver. Mas é tudo previsível e os clichês surgem aqui e ali.

Uma pousada é palco de assassinatos misteriosos. Na base do “quem será a próxima vítima?”, proprietários e hóspedes (aí incluídos três assaltantes), todos são suspeitos.

Como se vê, um enredo pouco original. Espécie de “Irma Vap” menor (o quadro com o rosto de uma mulher também está lá), a peça não consegue ser ligeira. Os números musicais desanimados são o principal empecilho.

E depois tem as interpretações. Christiane Manara, que também dirige ao lado de Walter Stein, sustenta a peça em dois papéis: a velha Antonieta e a bela Juliete. Mostra alguma comicidade. Gentil de Oliveira (Salvatore) e Silvia Assumpção (Condessa) fazem rir, ainda que caricaturais. O restante do elenco é “apoio”.

Voltando ao texto de Albissú e Manara, é preconceituoso quando Juliete nutre uma possível paixão por outra mulher. “Não sou dessas”, “vagabunda” e “mau caminho” são algumas pixações contra a homossexualidade feminina. Para um espetáculo voltado para o público adolescente, de fato assusta.

 

Nem Isto, Nem Aquilo, Fique Tranquilo – De Nelson Albissú e Christiane Manara. Direção de Manara. Com a Carpie Dien Produções (Paulo Branco, Luis Alberto, Etel Verde, Andrea Duque, Luciana Ferraz, Victor Gimenes, Paulo Vilas Boas e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Artur Azevedo (avenida Paes de Barros, 955, Mooca, tel. 292-8007). R$ 8,00. 100 minutos. Reservas para escolas: tel. 280-1094. Até agosto.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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