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Folha de S.Paulo

A terceira margem do rio

22.2.2005  |  por Valmir Santos

São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

TEATRO 
Teatro da Vertigem escolhe trecho do Tietê, em SP, como espaço alternativo para a montagem de sua quarta peça

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local

Quem segue pela marginal Tietê, a via nem sempre expressa de São Paulo, muitas vezes não se dá conta do rio à esquerda. Na próxima primavera, motoristas e passageiros terão a chance de inverter as coisas e olhar a cidade da perspectiva de quem navega em águas desaceleradas, espectador insólito das cenas que o grupo Teatro da Vertigem pretende criar em barco, plataformas, pontes ou bordas -onde der.

Em seus 12 anos, o Vertigem já converteu em palco igrejas, hospitais e presídios. Agora, um trecho do rio Tietê, na zona norte, entre o complexo do Cebolão e a foz do rio Tamanduateí, antes da ponte das Bandeiras (cerca de 11 km), poderá servir como espaço não-convencional para o espetáculo.

A proposta surgiu há sete meses, durante incursões do projeto “BR3”, que interagiu com o distrito paulistano de Brasilândia (zona norte) e viajou até as cidades de Brasília (Distrito Federal) e Brasiléia (Acre), num mergulho sobre conceitos de identidade e território deste gigante Brasil.

Esboçada, a idéia conquistou o apoio de órgãos ou entidades que se ocupam do Tietê: a ONG S.O.S. Mata Atlântica, o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Amanhã, o assunto será debatido na sede do Vertigem, com representantes das instituições e do grupo.
 


Após “Apocalipse 1,11”, grupo cria espetáculo baseado em viagem por Brasília, Brasiléia e Brasilândia



Durante a ocupação e expedição do “BR3”, os artistas se depararam constantemente com o elemento água e suas variantes: depósito de dejetos (os córregos em Brasilândia), fonte de lazer e umidade (o lago Paranoá, em Brasília) e meio de transporte fundamental para a população e comércio (o rio Cuiabá na passagem por Mato Grosso, o rio Acre cortando Brasiléia e o rio Madeira beirando Porto Velho, em Rondônia).

Na base do “BR3”, calhou também o cruzamento entre arcaico e moderno, primitivo e contemporâneo. “No momento, existe todo um processo de revitalização, de salvamento, de despoluição, mas, concretamente, o Tietê é um rio morto pela civilização; não tem peixe, é praticamente um esgoto a céu aberto”, diz o diretor Antônio Araújo, 38. Instiga-o trabalhar com um elemento natural dentro de uma megalópole que se contradiz na relação com a natureza.

DeslocamentoOutro fator é propiciar ao espectador um espelho do que foi a viagem por meio do deslocamento. Araújo fala em trajeto fluvial que represente o cruzamento das localidades percorridas no “BR3”.

A dramaturgia processual de Bernardo Carvalho, escritor e colunista da Folha, já contempla isso. “Quando voltamos da viagem, não queria fazer uma espécie de ilustração de cada lugar. Desejava uma história que fosse um pretexto para a gente falar dos outros lugares”, diz Carvalho, 44, que escreve seu primeiro texto para o teatro. Ainda não o batizou, mas deve concluir a primeira versão em março.

O grupo só quer comentar a história quando estiver pronta.

Não faltarão, porém, observações sobre o conflito do homem contemporâneo com sua dimensão espiritual.

“É curioso: a sociedade brasileira não é, mas o Estado deveria ser laico. Há um crucifixo no cenário da Câmara dos Deputados, numa capital construída por um comunista [Oscar Niemeyer] dentro de uma perspectiva de arquitetura totalmente moderna. É estranho, mas o país é totalmente dominado pela religião”, diz Carvalho, que, a contragosto, cedeu aos afluentes do sagrado e do profano como conseqüência da pesquisa.

Semanas atrás, quando o grupo fez a primeira viagem no trecho escolhido do Tietê, a bordo de uma lancha, notou que a instabilidade sobre as águas mexe com os sentidos do olhar, da audição, do olfato (possivelmente, o público receberá máscaras). Brecha para um estado alterado de consciência. Como nos espetáculos anteriores do grupo teatral, o Vertigem almeja que o espectador modifique a sua percepção quanto ao lugar “redescoberto”.

Por enquanto, o grupo mantém os pés no chão. Expõe agora um desejo, mas sabe que ainda há muito por fazer -e obter. A lista para infra-estrutura é extensa: transporte até a marginal, segurança, barcos para elenco e público, plataformas adaptadas etc.

Os custos podem ultrapassar a soma da produção da “Trilogia Bíblica”, conforme estima o técnico Guilherme Bonfanti, responsável pela criação de luz. Um desafio para um grupo que conta somente com uma última parcela (atrasada) da Lei de Fomento à Cultura e tem a montagem inscrita em leis de incentivo.

“O projeto tem uma proporção maior em relação ao que a gente já fez”, diz Bonfanti, 48, que torce pela sua viabilização.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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