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Folha de S.Paulo

Trupe concebe “Hygiene” em vila operária

13.3.2005  |  por Valmir Santos

São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

TEATRO 
Peça do Grupo XIX de Teatro ocupa conjunto arquitetônico abandonado do Belenzinho, tombado como patrimônio histórico

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local

Fantasmas que habitam alguns prédios públicos abandonados há pelo menos três décadas na Vila Operária Maria Zélia (1917), no Belenzinho, zona leste, estão contracenando desde ontem com operários, imigrantes e lavadeiras -tal qual no início do século 19.

É na Escola dos Meninos, como era chamado um dos dois estabelecimentos de ensino da vila -o outro era o das Meninas-, que acontece a segunda parte do espetáculo “Hygiene”.

Na primeira parte, público e atores percorrem, sempre à luz do dia, alguns metros entre ruas e travessas, prédios semi ou totalmente destruídos e bem cuidadas casas de moradores.

O passeio por “dentro da peça” flagra a memória do conjunto arquitetônico tombado como patrimônio histórico em 1992, agora reavivado cenicamente pela montagem do Grupo XIX de Teatro.

Revelado em “Hysteria” (2001), que ocupava casarões para mostrar a vida de cinco mulheres confinadas num hospício, o grupo agora pesquisa o processo de higienização urbana do Brasil, no início do século 19, sob a perspectiva de moradores, sobretudo moradoras, de um cortiço. “Veja bem: não é a história da Vila Maria Zélia”, diz o diretor Luiz Fernando Marques, 27.

“Se as mulheres de “Hysteria” tinham o corpo castrado, eram entendidas pela medicina como doentes, aqui elas são mais libertas, apesar de exploradas no trabalho”, diz Marques.

“Muitas lavadeiras carregavam até 70 quilos de pano na cabeça durante o dia e à noite trabalhavam como prostitutas”, diz a atriz Sara Antunes, 22.

O espetáculo “Hygiene” quer dar conta daquelas condições de habitação, retrato bem acabado dos conflitos que iam pela época e ainda hoje respingam nas páginas dos jornais.

“A história mostra que, em nome da “limpeza” urbana, já se fez muitas coisas no mínimo questionáveis”, diz Marques.

A própria criação das vilas operárias (a cidade chegou a ter cerca de 40) era indício de uma política pública de “higienização”, segundo o diretor.

Quando idealizou a construção da Vila Maria Zélia, o industrial Jorge Street (1863-1939) conjugou casas (hoje, cerca de 180) então à margem do rio Tietê, ao lado de duas fábricas de jutas, num espaço que incluía creche, escolas, salão de baile, capela, armazém, sapataria e boticário (é esse edifício, por exemplo, que o Grupo XIX faz as vezes de camarim).

Relação de troca
Em 13 meses de residência na Maria Zélia, por conta da Lei de Fomento, o grupo experimentou o pêndulo espaço público e privado. É como entrar na “casa” da vila e, porta aberta, estabelecer a troca. Alguns moradores colaboraram diretamente. Outros, resistiram (leia texto abaixo).

O diretor Luiz Fernando Marques estima que 40% dos moradores têm mais de 70 anos, mas nota que aqueles que demonstram interesse pela presença do grupo têm idade variada.

“Hygiene” narra o último dia na vida de um cortiço. Seus personagens, interpretados por quatro atrizes e três atores, são como que embriagados por um rito de passagem que não escolheram.

“A peste mais terrível é aquela que não divulga suas feições”, receita o Médico na peça, quando a medicina em tudo intervinha.

“Aqui, quando adoecemos, o médico que bate à nossa porta é a polícia”, reclama a Operária, imigrante polonesa “sem pão e, daqui a pouco, sem teto”.

Depois de circular pela vila em cima de uma carroça, a Noiva adoentada da história, calada e abatida, caminha descalça pelo piso gasto e molhado do que poderia ser o pátio da escola, cuja fachada aparenta um castelo mal-assombrado.

E assim o grupo rememorou pandeiros, batuques, sotaques, panos de renda e baldes d’água em meio a tanta roupa suja.



Hygiene
Pesquisa e criação:
Grupo XIX de Teatro (Gisela Millás, Janaína Leite, Juliana Sanches, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Sara Antunes) 
Direção: Luiz Fernando Marques 
Espaço cênico e figurinos: Renato Bolelli 
Onde: Vila Operária Maria Zélia (r. Cachoeira, esquina com r. dos Prazeres, Belenzinho; reservas pelo tel. 8283-6269); 60 lugares; www.grupoxixde teatro.ato.br 
Quando: sáb. e dom., às 16h; até 17 de abril (retorna no segundo semestre)
Quanto: entrada franca


Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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