Folha de S.Paulo
4.4.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 04 de abril de 2006
TEATRO
Rubens Rusche faz palestras sobre o pensamento do irlandês, cujo centenário de nascimento se completa no dia 13
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Encenador bissexto, Rubens Rusche, 54, foi revelado duas décadas atrás com “Katastrophé” (1986). O espetáculo virou cult no Rio de Janeiro e em São Paulo, tal a obsessão em captar a forma e o conteúdo de quatro peças curtas e pouco conhecidas de Samuel Beckett (1906-89).
Quem viu guarda para sempre a boca de Maria Alice Vergueiro em “Eu Não”, lábios, dentes e língua movediços em único e diminuto ponto de luz na escuridão que engolia o público.
Às vésperas do centenário de nascimento do dramaturgo irlandês, no próximo dia 13, Rusche é uma das vozes mais ouvidas em encontros em São Paulo motivados pela efeméride. Ele dirigiu ainda pelo menos duas importantes produções afins, “Beckettiana # 3” (2000) e “Fim de Jogo” (1996), protagonizadas pelo gaúcho Linneu Dias (1927-2002). O trabalho mais recente de Rusche, “Ânsia”, da inglesa Sarah Kane, também reverberava Beckett.
A seguir, o diretor paulista que se dedica à obra de Beckett desde 1983 faz jus também à formação de filósofo e especula sobre o pensamento do dramaturgo do qual se diz “discípulo artístico”.
Ao contrário, vou implodindo essa palavra, dinamitando a sintaxe, a lógica, de modo que o silêncio possa emergir através das fendas. Em “Esperando Godot”, quando bem encenado, nota-se que o silêncio vai invadindo a peça como a água num navio que naufraga. Os personagens de Samuel Beckett têm pavor do silêncio e, ao mesmo tempo, são atraídos por ele.
O Amor
Nas últimas releituras, venho descobrindo que um dos grandes temas de Beckett é o amor. Um amor inalcançável. Eu chamo de amor uma intensa amizade, mais forte que o sentimento amoroso romântico. A amizade não tem muito o sentido da posse.
Mas o amor também surge da relação sadomasoquista, como Vladimir e Estragon em “Godot”, ou Hamm e Clov em “Fim de Jogo”. Eles são como pais e filhos, amantes ou casais em dependência mútua. A velha história do “nunca contigo, nunca sem ti”.
Sem qualquer supérfluo, o teatro então é feito da relação desses dois seres e nada mais.
O Dilema
Seus personagens não podem nem sair nem permanecer. Lidam com a impossibilidade de se mover de maneira verdadeira, a não ser por meio da criação de jogos lingüísticos. Mas, aos poucos, os jogos também vão sendo retirados. O mundo dos jogos é o do tédio. Em “Oh! Os Belos Dias” [ou “Dias Felizes”], a protagonista Winnie prefere o tédio de existir ao sofrimento de ser. O sofrimento de ser é quando as palavras lhe faltam, quando os jogos não existem mais, quando a personagem enfrenta a si mesma e sente a dureza de estar num deserto, afundando num buraco e sem saber quem ela é.
O Ego
Muitos atores não querem fazer Beckett porque não há espaço para o ego deles, para a “gag”, o improviso, o showzinho. Aí, entra a noção de sagrado, porque exige uma entrega do intérprete. É uma obra que passa por todo um processo artístico no sentido do sagrado, da religação, do autoconhecimento, do espírito, do corpo. Temos que ao menos ser fiéis a essa proposta de tentar expressar o inominável.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.