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Folha de S.Paulo

Ordem ao caos

19.3.2008  |  por Valmir Santos

São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2008

TEATRO
Sob direção de Aderbal Freire-Filho, Drica Moraes leva monólogo sobre mulher obsessiva ao Festival de Curitiba 

VALMIR SANTOS
Enviado especial ao Rio

Numa tarde de sábado, Aderbal Freire-Filho recebe a reportagem em seu apartamento, em Ipanema. Perto do computador, ao lado do sol da janela, notam-se fotografias em preto-e-branco da casa de Bertolt Brecht em Berlim, que ele conheceu há pouco. E a estante com os livros aos quais o diretor recorre, em vários momentos, para citar um possível futuro romance-em-cena, como “O Púcaro Búlgaro”, de Walter Campos de Carvalho (1916-98), levado integralmente ao palco.

Em cartaz com “As Centenárias”, no teatro Poeira (Botafogo), Freire-Filho conversa com a Folha sobre “Hamlet” -previsto para junho em SP, com Wagner Moura- e “A Ordem do Mundo”, monólogo com Drica Moraes cuja pré-estréia será no Festival de Curitiba, que começa amanhã -os ingressos para a peça, dias 28/3 e 29/3, estão esgotados; a organização estuda abrir sessão extra.

A profusão tem a ver com a natureza inquieta desse pensador e praticante do teatro, um ofício de 35 anos que constrói e demole ao mesmo tempo. “O teatro se reinventa a todo momento. Pode parecer presunção quando já houve Shakespeare, mas é preciso reinventá-lo com olhos “despreconceituosos'”, diz Freire-Filho, 66.

É o que deseja ao montar “Hamlet”, peça que ensaia e co-traduz nestes dias. “Não para mostrá-la de novo, mas como se fosse pela primeira vez, passando por todos os labirintos que nos levem ao inesperado.”

A parceria com Moura o entusiasma (trabalharam juntos em “Dilúvio em Tempos de Seca”, 2004). “Ele está no momento certo para fazer Hamlet, na idade, na carreira, na relação com o teatro e a sociedade. Ele precisa ser o Hamlet”, diz. Acredita que o desafio para o ator é redobrado quando ainda se tem na retina o impacto da interpretação do capitão Nascimento em “Tropa de Elite”.

Especialista em caos
Freire-Filho vê os passos iniciais na concepção da tragédia coincidirem com o primeiro vôo cômico, mas não menos dramático, de “A Ordem do Mundo”, peça de Patrícia Melo defendida por Moraes, 38. “Ele é uma parabólica sensitiva”, diz a atriz sobre o trabalho com o diretor em seu primeiro monólogo. Co-fundadora da Cia. dos Atores, ela transita pela TV e agora experimenta interpretação das mais áridas.

“Meu negócio é conteúdo”, diz a personagem Helena, empregada de uma misteriosa central. Num espaço fechado, envolta por pilhas de jornais, seu trabalho é ler notícias, contextualizá-las e emitir parecer técnico que dê conta dos mecanismos da realidade lá fora.

“Ela é especialista em caos mundial, uma missão impossível”, diz Moraes. Helena expressa opinião sobre os mais variados assuntos, como comportamento, ciência, liberdade, justiça e beleza, entre outros, certa de que age objetivamente, desconsiderando as variações da sua personalidade, o mau humor recorrente, o namorado que não lhe dá bola, o filho que está a bordo de um barco em algum lugar do planeta.

“Seu projeto de independência cai por água quando esbarra no vazio, na perplexidade da vida. Ela capota”, diz Moraes. A personagem tem como interlocutor um “senhor da central” invisível, mas a atriz sabe que sua relação será com o olhar da platéia, que não será desviado em meio ao fluxo narrativo.

Para Freire-Filho, que já havia dirigido outro texto de Melo, “Duas Mulheres e um Cadáver” (2000), Helena encerra vetores do futuro e reminiscências do passado, o que a torna próxima e, depois, distante.

“Ela é a mulher livre de hoje, que encontrou seu espaço, independência, que pôs sabedoria e talento contra todos os preconceitos nossos, masculinos. Mas que também enfrenta angústias, a solidão, a dificuldade em conciliar os compromissos, inclusive a relação com o filho, no caso da peça”, diz o diretor. Ele, sim, faz do equilíbrio nos compromissos palavra de ordem numa arte em que conflito é matéria-prima. 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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