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Valor Econômico

Anatomia do método Antunes Filho [Hierofania, Sebastião Milaré]

3.9.2010  |  por Valmir Santos

Teatro: “Hierofania”, de Sebastião Milaré, contextualiza as reflexões do criador do Centro de Pesquisa teatral

03/09/2010 – Caderno Eu & Fim de Semana

Por Valmir Santos, para o Valor, de São Paulo

Com mais de seis décadas de vida teatral, contando-se a fase amadora iniciada em 1948, Antunes Filho é o diretor brasileiro a quem o epíteto de mestre assenta com justiça na deferência com que as gerações de discípulos o tratam. Seu nome encerra uma escola e um método de ator que tornaram indissociáveis a pesquisa e a criação. Se parte razoável dos espectadores tornou-se mais ativa na recepção a experimentos formais e temáticos, para além dos espetáculos que lhe dão tudo mastigado, isso tem a ver com os paradigmas colocados em mutação desde a antológica montagem de “Macunaíma” (1978). A adaptação da rapsódia homônima de Mário de Andrade introduziu procedimentos verticais nos modos de encenar e de interpretar.

Essa trajetória é esmiuçada em “Hierofania: o Teatro Segundo Antunes Filho”, do jornalista e crítico Sebastião Milaré. Ele mergulha nos processos criativos do Grupo de Teatro Macunaíma e a consequente instituição, em 1982, do Centro de Pesquisa Teatral pelo Serviço Social do Comércio, na unidade Consolação, em São Paulo. A linha de tempo até esta primeira década do milênio traça a evolução do coordenador do CPT e expõe como sistematizou, com a colaboração contínua de jovens aprendizes, os exercícios e fundamentos sobre a arte do ator e sua consciência de mundo.

O livro é autônomo em sua prospecção e funciona como um complemento a “Antunes Filho e a Dimensão Utópica” (editora Perspectiva, 1994), também de Milaré. A obra anterior acompanha a gênese e as três décadas seguintes. Recorta o adolescente paulistano, filho de portugueses semi-analfabetos e de apelido Zequinha que absorve hierarquia e disciplina como assistente dos diretores europeus do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, injetor de concepções modernas e profissionais.

“Hierofania” contextualiza as reflexões teóricas, práticas, empíricas, científicas, poéticas e espiritualistas de um trabalho que ambiciona o sagrado na construção da cena e na devoção de mulheres e homens que a alicerçam, comediantes na acepção artesã e múltipla do filósofo francês Denis Diderot. Coteja documentos e entrevistas, raros e inéditos, além de fotos, ilustrações e gráficos.

Notabilizado, entre outras razões, por alçar novos e talentosos intérpretes ao mesmo tempo em que imprime beleza nas ações e deslocamentos corais pelo vazio aparente do palco, Antunes acolhe conceitos de zen-budismo, taoísmo, hinduísmo, psicologia analítica e física quântica. Deixa-se influenciar por correntes aparentemente díspares. Visita a memória emotiva no naturalismo à maneira do russo Constantin Stanislavski, o distanciamento do personagem no épico do alemão Bertolt Brecht e os gestos metafísicos na dança butô do japonês Kazuo Ohno, todos eles mestres saudosos do século XX. É como se bebesse em fontes da tradição e enxergasse o rasto atrás que o conduziu a rupturas, ou não.

Rememorar o Grupo Macunaíma e o CPT é fundir-se à história do teatro brasileiro contemporâneo. O livro radiografa cabeça, tronco e membros. Os saltos qualitativos dessa carreira são inegáveis e, lemos, tributários de recursos públicos (“Macunaíma” nasceu de oficinas que Antunes ministrou contratado pela Secretaria de Estado da Cultura) e privados (o CPT é um departamento mantido pelo Sesc). Iniciativa entranhada em países europeus, o apoio financeiro à pesquisa e criação em cultura ainda é incipiente no Brasil. A ideologia antuniana, porém, se faz retroalimentar na sua cidade, fortalecida pelo teatro de grupo e pelo Programa Municipal de Fomento com foco em trabalho continuado.

 

“Hierofania: o Teatro Segundo Antunes Filho”

Sebastião Milaré. Edições Sesc-SP, 416 págs., R$ 85,00

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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