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Valor Econômico

Testemunho de um culto milenar [O Terceiro Sinal, Otavio Frias Filho]

3.9.2010  |  por Valmir Santos

Um exemplar de jornal dobrado, uma caderneta preta e
um revólver niquelado. Tudo pronto para entrar em
cena, não fosse o salto do sapato desprendido a 30
minutos de sua estreia, como a prenunciar o fiasco em
cena. Três dias antes, o diretor já ameaçara cortá-lo.
Precisava “cair no barraco” na pele de Caveirinha, o
inescrupuloso repórter de Nelson Rodrigues em “Boca de
Ouro”, ou estaria fora do elenco. Otavio Frias Filho não
esmoreceu. Socorrido em cima da hora com uma cola,
recobrou o ânimo que o trouxera até ali, no camarim,
maquiando-se desajeitado, terno e gravata e óculos de
armação grossa a mirar o seu duplo no espelho.
Em 20 de abril de 2000, o diretor de Redação da “Folha
de S.Paulo” pisou o chão de terra, o cimento, as tábuas
e os ferros do Teatro Oficina, de José Celso Martinez
Corrêa, em São Paulo. O relato da vivência como ator
em “Queda Livre: Ensaios de Risco” (Companhia das
Letras, 2003) migrou, de próprio punho, para o lugar
que merece, a cena ao vivo, como está convencida a
atriz Bete Coelho. Das primeiras leitoras do texto,
antes mesmo de chegar ao livro, ela levou pelo menos
oito anos tentando convencer o autor do potencial
dramático de “O Terceiro Sinal”. O teste ocorre em três
apresentações de hoje a domingo no Teatro Eva Herz da
Livraria Cultura.
A metalinguagem impera no projeto. Nome-chave na
imprensa brasileira contemporânea, Frias Filho,
também dramaturgo, reporta em primeira pessoa a
experiência real como não ator no papel de um
jornalista marrom que vai ao subúrbio apurar o
assassinato do rei do jogo do bicho. E Bete Coelho, que
trabalhou nos anos 80 e 90 com Antunes Filho, Gerald
Thomas e Zé Celso, defende o monólogo sobre o rito
iniciático, as agruras de um estranho no ninho entre
profissionais do ofício e seu testemunho de afeto ao
culto milenar ao teatro.
“O mote dessa peça, do teatro e da vida é que a gente
nunca sabe exatamente o que é verdade e o que é
mentira”, diz Bete. Ao que o narrador assente: “Não sei
se isso deve ou não ser combatido pelo bom ator, mas
em cena ele sempre é uma pessoa dividida em duas, a
que é o personagem e o público vê e a que tem
consciência de um mundo íntimo, vedado ao
personagem e ao público”.
Autor e atriz se conhecem desde 1988, quando ela
interpretava “Um Processo”, a leitura de Thomas para o
romance homônimo de Franz Kafka. Em 1993, Bete
encabeçou “Rancor”, peça de Frias Filho sobre o embate
de um crítico de arte com seu pupilo, intelectuais
versus jornalistas, em encenação de Jayme Compri.
A direção de arte de Flávia Soares optou por escancarar
o espaço, a coxia, a contrarregragem. O diretor do
espetáculo, Ricardo Bittencourt, afirma que “a magia
está em revelar a magia do teatro com muita
simplicidade”. Ele atuou por oito anos no grupo de Zé
Celso e foi dirigido por Bete Coelho no solo “O Homem
da Tarja Preta” (2009), do psicanalista Contardo
Calligaris. Aqui, diz se deixar dirigir pela atriz “no papel
de diretor”.
No palco, o personagem masculino mimetiza o estilo
metódico do autor, que, conforme a atriz, não deixa de
plasmar poética em sua escrita cirúrgica. “Não se trata
de imitar a figura do Otavio, como não imitei Cacilda.
Não tenho o dom. Meu trabalho é bem claro nesse
sentido, sobretudo quando com personagens da vida
real”, ressalta a atriz que viveu Cacilda Becker no
Oficina em 1998, produção gravada em 2001 em DVD
com o autor novamente às voltas como ator, dessa vez
no papel do crítico Miroel Silveira, como descreve em
“O Terceiro Sinal”.
Apesar da travessia pessoal de Frias Filho, o
protagonista é o teatro, pondera a atriz. O texto
debruça-se sobre essa arte, o processo de criação do
ator, da voz à ação corporal. A prosa direta sistematiza
sem pedantismo, justamente aquilo a que o autor
resistia. Sua linguagem abarca pensadores e criadores
como Constantin Stanislavski, Denis Diderot, Søren
Kierkegaard, Haroldo de Campos, entre outros, ao
mesmo tempo em que é capaz de discorrer sobre as
gotículas brilhando nos poros da pele da barriga de uma
atriz com quem contracena.
Mas o espetáculo não pretende alçar demasiado ao
plano das ideias. Importa mais a teatralidade
concretizada na tentativa desse homem em ser ator,
seu percurso, a inexperiência diante do público, a
espera pela deixa que “chegava com a brutalidade de
um coice”. “Não ser ator era um álibi e ao mesmo
tempo consistia no próprio delito: o palco não foi feito
para amadores”, sentencia o narrador.
A equipe de criação (incluídas as irmãs Muriel,
codiretora, e Michele Matalon, desenho de luz)
conforma a recém-batizada Companhia BR 116, de
ascendências mineira, carioca, baiana e de outros
Estados em terras paulistas e alhures. E abre flancos,
no médio prazo, para montar “Cartas de Amor para
Stálin”, do espanhol Juan Mayorga, com tradução de
Manuel da Costa Pinto e direção de Paulo Dourado, e
um “Fausto” por Calligaris, via Johann Wolfgang Goethe
e Christopher Marlowe, com Bittencourt no papel-título
e Bete Coelho sob a capa de Mefistófeles.
“O Terceiro Sinal” Onde: Teatro Eva Herz da Livraria
Cultura – Conjunto Nacional (avenida Paulista, 2.073,
tel. 0/xx/11/3170-4059) Quando: somente hoje e
amanhã, às 21 h, e domingo, às 19Teatro: Bete Coelho encena monólogo de Otavio Frias Filho que se debruça sobre a

arte teatral e o processo de criação do ator.Quanto: R$

 

 

 

40,00 e R$ 20,00

 

 

Caderno Eu & Fim de Semana – 23/07/2010 

 

 

Teatro: Bete Coelho encena monólogo de Otavio Frias Filho que se debruça sobre a

arte teatral e o processo de criação do ator.

 

 

 

Por Valmir Santos, para o Valor, de São Paulo

 

Um exemplar de jornal dobrado, uma caderneta preta eum revólver niquelado. Tudo pronto para entrar emcena, não fosse o salto do sapato desprendido a 30minutos de sua estreia, como a prenunciar o fiasco emcena. Três dias antes, o diretor já ameaçara cortá-lo.Precisava “cair no barraco” na pele de Caveirinha, oinescrupuloso repórter de Nelson Rodrigues em “Boca deOuro”, ou estaria fora do elenco. Otavio Frias Filho não esmoreceu. Socorrido em cima da hora com uma cola,recobrou o ânimo que o trouxera até ali, no camarim,maquiando-se desajeitado, terno e gravata e óculos dearmação grossa a mirar o seu duplo no espelho.

 

 

Em 20 de abril de 2000, o diretor de Redação da “Folhade S.Paulo” pisou o chão de terra, o cimento, as tábuase os ferros do Teatro Oficina, de José Celso MartinezCorrêa, em São Paulo. O relato da vivência como atorem “Queda Livre: Ensaios de Risco” (Companhia dasLetras, 2003) migrou, de próprio punho, para o lugarque merece, a cena ao vivo, como está convencida aatriz Bete Coelho. Das primeiras leitoras do texto,antes mesmo de chegar ao livro, ela levou pelo menosoito anos tentando convencer o autor do potencialdramático de “O Terceiro Sinal”. O teste ocorre em trêsapresentações de hoje a domingo no Teatro Eva Herz daLivraria Cultura.

 

A metalinguagem impera no projeto. Nome-chave naimprensa brasileira contemporânea, Frias Filho,também dramaturgo, reporta em primeira pessoa aexperiência real como não ator no papel de umjornalista marrom que vai ao subúrbio apurar oassassinato do rei do jogo do bicho. E Bete Coelho, quetrabalhou nos anos 80 e 90 com Antunes Filho, GeraldThomas e Zé Celso, defende o monólogo sobre o rito iniciático, as agruras de um estranho no ninho entreprofissionais do ofício e seu testemunho de afeto aoculto milenar ao teatro.”

 

O mote dessa peça, do teatro e da vida é que a gentenunca sabe exatamente o que é verdade e o que émentira”, diz Bete. Ao que o narrador assente: “Não seise isso deve ou não ser combatido pelo bom ator, masem cena ele sempre é uma pessoa dividida em duas, aque é o personagem e o público vê e a que temconsciência de um mundo íntimo, vedado aopersonagem e ao público”.

 

Autor e atriz se conhecem desde 1988, quando elainterpretava “Um Processo”, a leitura de Thomas para oromance homônimo de Franz Kafka. Em 1993, Beteencabeçou “Rancor”, peça de Frias Filho sobre o embatede um crítico de arte com seu pupilo, intelectuaisversus jornalistas, em encenação de Jayme Compri.

 

A direção de arte de Flávia Soares optou por escancararo espaço, a coxia, a contrarregragem. O diretor doespetáculo, Ricardo Bittencourt, afirma que “a magiaestá em revelar a magia do teatro com muitasimplicidade”. Ele atuou por oito anos no grupo de ZéCelso e foi dirigido por Bete Coelho no solo “O Homemda Tarja Preta” (2009), do psicanalista ContardoCalligaris. Aqui, diz se deixar dirigir pela atriz “no papel de diretor”.

 

No palco, o personagem masculino mimetiza o estilometódico do autor, que, conforme a atriz, não deixa deplasmar poética em sua escrita cirúrgica. “Não se tratade imitar a figura do Otavio, como não imitei Cacilda.Não tenho o dom. Meu trabalho é bem claro nessesentido, sobretudo quando com personagens da vidareal”, ressalta a atriz que viveu Cacilda Becker noOficina em 1998, produção gravada em 2001 em DVDcom o autor novamente às voltas como ator, dessa vezno papel do crítico Miroel Silveira, como descreve em”O Terceiro Sinal”.

 

Apesar da travessia pessoal de Frias Filho, oprotagonista é o teatro, pondera a atriz. O textodebruça-se sobre essa arte, o processo de criação doator, da voz à ação corporal. A prosa direta sistematizasem pedantismo, justamente aquilo a que o autorresistia. Sua linguagem abarca pensadores e criadorescomo Constantin Stanislavski, Denis Diderot, SørenKierkegaard, Haroldo de Campos, entre outros, ao mesmo tempo em que é capaz de discorrer sobre asgotículas brilhando nos poros da pele da barriga de umaatriz com quem contracena.

 

Mas o espetáculo não pretende alçar demasiado aoplano das ideias. Importa mais a teatralidadeconcretizada na tentativa desse homem em ser ator,seu percurso, a inexperiência diante do público, aespera pela deixa que “chegava com a brutalidade deum coice”. “Não ser ator era um álibi e ao mesmotempo consistia no próprio delito: o palco não foi feitopara amadores”, sentencia o narrador.

 

A equipe de criação (incluídas as irmãs Muriel,codiretora, e Michele Matalon, desenho de luz)conforma a recém-batizada Companhia BR 116, deascendências mineira, carioca, baiana e de outrosEstados em terras paulistas e alhures. E abre flancos,no médio prazo, para montar “Cartas de Amor para Stálin”, do espanhol Juan Mayorga, com tradução deManuel da Costa Pinto e direção de Paulo Dourado, eum “Fausto” por Calligaris, via Johann Wolfgang Goethee Christopher Marlowe, com Bittencourt no papel-títuloe Bete Coelho sob a capa de Mefistófeles

 

“O Terceiro Sinal”

Onde: Teatro Eva Herz da Livraria Cultura – Conjunto Nacional (avenida Paulista, 2.073,tel. 0/xx/11/3170-4059) Quando: somente hoje eamanhã, às 21 h, e domingo, às 19 h Quanto: R$40,00 e R$ 20,00

 

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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