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contracena

A construção de sentidos outros em ‘Nomes do pai’

26.2.2011  |  por Valmir Santos

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Nomes do pai é um teatro espantoso na capacidade de gerar ruídos sobre essa arte. O conteúdo do espetáculo da Companhia da Memória remete ao pátrio poder, ao dogma postado na cabeceira da mesa familiar, à opressão no topo da santíssima trindade, aos afetos boicotados na figura da autoridade, a mão única da falta de abraço. A desobediência a esse crivo ancestral e a percepção daquilo sobre o qual não se diz ou não se nomeia conduzem a empreitada do dramaturgo Luís Alberto de Abreu, ao abdicar da palavra para amplificar as semânticas em Kafka e Rilke. Do diretor Ruy Cortez, ao eleger a subtração como força motriz da obra. E dos atores Fábio Takeo e Rafael Steinhauser, ao dar corpo ao primado da essência sobre a existência, filosofia que ademais coloca toda a equipe sob a rubrica do risco.

 

A montagem combina severidade e brandura em seus recantos temáticos e estéticos. A estratégia do menos é mais grifa o vazio do espaço cênico de André Cortez em uma das suas cenografias mais enxutas. O ponto de equilíbrio conforma uma mandala ao fundo numa explosão de raios de luz, na sequência final, imagem central também na iluminação de Fábio Retti: uma íris redentora nos conflitos de pai e filho, respectivamente Steinhauser e Takeo.

 

Estes são os pilares de uma escrita cênica que exige uma calibrada partitura de ações físicas e de intencionalidades. É aqui que o espetáculo vinga sua particularidade: um roteiro vertiginoso sobre o ato de sublinhar. Despidos da unidade explícita da palavra, cabe ao atores e ao dramaturgo preencher o equivalente à página em branco. E ao espectador, encontrar seu próprio sistema de apreensão, tal qual um leitor de Braille diante dos pontos em relevo ou de um leitor de sinais de libras.

 

Nessa paisagem de ideias, sensações e imagens universais decalcadas dos livros Carta ao pai, de Franz Kafka, e Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, dois filhos expoentes de Praga, o diálogo interpessoal é deslocado para outros lugares que não o do recurso estrito da coreografia ou da mímica, como se poderia supor. As cenas pulsam uma conversa intermitente, feita de silêncio e música ao piano e ao vivo, composta e executada por Henrique Eisenmann e Tomaz Vital, em revezamento durante a temporada no Teatro Ágora, em São Paulo. A coexistência do instrumento e do músico fornece outras camadas ao público diante do embate performativo.

 

A teatralidade é veiculada por meio de gestos, movimentos e olhares reluzentes dos intérpretes vestidos como manda a convenção ocidental e cinzenta do paletó e gravata, logo postos em desalinho por causa do agitado das almas. É determinante ainda a relação com objetos como o banco de madeira, a jarra de barro, o tecido branco, a flor da roseira. É nessa valsa bruta e delicada que Nomes ao pai diz a que veio, abrindo-se às construções de sentidos outros e chamando poeticamente o interlocutor à autonomia de também elaborar as suas.

 

Recém-ingressada em seu quinto ano de trabalho, a Companhia da Memória delimita seu interesse por um teatro do ator e da dramaturgia, compreendidos em noções ampliadas, como já demonstrara em Rosa de vidro (2007), inspirada na biografia e na obra de Tennessee Williams, escrita por João Fábio Cabral e com atuações de Julia Bobrow e Gilda Nomacce, entre outros. O encenador Ruy Cortez, que cumpre residência artística durante este semestre em Moscou (Escola Estudio MHAT, junto ao Teatro de Arte de Moscou), aporta novos registros em Nomes do pai e dá provas de que o rigor da pesquisa pode levá-lo ainda mais além.

 

(26 de fevereiro de 2011)

 

 

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Nomes do pai

 

Preparação de ator: Antônio Salvador

Cenografia: André Cortez

Iluminação: Fábio Retti

Figurinos: Cássio Brasil

Composição musical e músicos convidados: Henrique Eisenmann e Tomaz Vital

Assessoria de dramaturgia sonora: Aline Meyer

Confecção dos figurinos: A Indumentária Nacional

Costureiros: Railda Pereira, Adriano Liver e Sueli Ribeiro

Cenotécnia: Paulo Pansani

Contrarregragem: Bruno Bonfim

Operação de luz: Jeff Campos

Coordenação da assessoria teórica: Luiz Felipe Pondé

Assessoria teórica:: Luiz Felipe Pondé, Renata Martins, Enrique Mandelbaum, João Carlos Guedes da Fonseca, Lúcia Cortez, Lílian Quintão e Cássia Barreto Bruno, Ricardo Goldenberg e Adela Stoppel

Design gráfico: Graziela Kunsch

Ilustração: André Mesquita

Fotografia: João Caldas

Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro

Assistente de produção: Vera Toledo

Produção executiva: Érica Teodoro

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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