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contracena

Um chamado ao teatro da alma

21.2.2011  |  por Valmir Santos

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Ao partilhar o processo em detrimento do produto dito acabado, a Companhia de Teatro Balagan faz de Prometheus Nostos a materialização da impermanência humana, o estado de rascunho a transmutar feito o barro que amanhece tijolo. Um contraponto à sociedade de resultados. A saber: nunca ficamos prontos, entrediz a mitologia grega na jornada do titã previdente que deu corpo ao humano, o ser animal embrionário da argila, e enfrentou o pai dos deuses para libertar a humanidade das trevas e dotá-la de asas do conhecimento. O que se fez e se faz dessa liberdade (a arte, a guerra), eis o xis da questão.

Nada de surpreendente na adoção do “work in progress”, mais comum no Brasil a partir do final dos anos 1980. No entanto, apropriar-se desse procedimento de maneira transversal e sistêmica em todas as etapas de criação de um espetáculo vindouro confere ao espectador, desde já, um alumbramento diante da potência simbólica que descortina. Quem se dispõe a enfrentar esse rigoroso material trágico organizado sob a perspectiva das linguagens contemporâneas e ancestrais não sai indiferente, instado à percepção de sentidos individuais e coletivos ainda agora urgentes.

A justaposição é um recurso pactuado desde que o público pisa o espaço cênico. O movimento do prólogo transcorre oculto atrás de um pano inteiriço. A platéia bipartida – na maioria das passagens uma parte não vê a outra – apenas ouve a fala e o canto em língua grega, o ditirambo em sua essência primitiva. Toma o lugar a musicalidade sibilante que nos é estranha, excita o imaginário e aos poucos nos situa e sensibiliza para a ritualização do mito.

Escutas e escolhas comporão o percurso do espectador, deslocado de um nicho a outro, ora entre divisórias de pano ora em paisagem aberta. A encenação concede aos presentes subverter os caminhos traçados, autonomia que raros aproveitam. Há um intermitente desvelar e velar de intérpretes portadores de narrativas em voz, gesto e ritmo. Uma inscrição precisa nas unidades de tempo, espaço e ação. Esta, sobretudo, a cargo de atores tecnicamente bem preparados e zelosos em não sublinhar isso em cena. A sincronia do conjunto abraça o protagonismo de Prometeu e Pandora sem anulá-los, ao contrário, situando o homem e a mulher no plano da cosmovisão.

Os modos de narrar e encenar fogem do didatismo histórico-cultural das imagens ou palavras sobre o destino do personagem-título, o enfrentamento de Zeus, tal um Jó bíblico, a resistência à águia que lhe come o fígado na prisão, e assim por diante. A dramaturgia, por Leonardo Moreira (da Companhia Hiato, “Escuro”, “Cachorro Morto”), compõe várias “janelas” e “paredes” à mercê do olhar e do espírito do espectador. O signo verbal gera quadros que a cenografia de Márcio Medina e o desenho de luz de Fábio Retti redimensionam cinematograficamente, com se o deslocamento de quem assiste equivalesse à rotação da Lua em volta da Terra. Mesmo sentados em pontos alternados, a  circularidade se impõe física e poeticamente.

 

Um retrospecto das criações anteriores da Balagan expõe arquétipos da clausura na mulher (os conventos medievais em Sacromaquia, de 2000), no homem (o horizonte asfixiante do sertão no peito dos vaqueiros em Tauromaquia, de 2004) e nas pulsões agônicas de ambos os gêneros (um rei, uma rainha e dois países conflagrados em Západ – A tragédia do poder, de 2006). Em Prometheus Nostos (sendo “nostos” a expressão grega para “retorno” ou “nostalgia”), esses vetores surgem mais urdidos. O domínio do espetacular e do texto é aprofundado. O envolvimento contínuo de boa parte da equipe ao longo da última década contribui para a clareza do pensamento artístico de Maria Thais traduzido amiúde nas texturas da maquiagem, dos figurinos, da atuação, da coreografia, da música, enfim, de todo o universo mítico e nem sempre harmônico com o qual o espetáculo enreda o cidadão de hoje em sua dança. O senso de convenção da teatralidade é afirmado em sua complexão sagrada e profana.

 

Nesse chamado ao teatro da alma, é notável que o autonomeado espetáculo-protótipo se mostre tão por inteiro ao espectador de uma estação, que não necessariamente embarcará nas próximas. Antítese para a tecla única publicitária de que estar preparado é tudo. O humano e o animal de cada um moram na incompletude. O fogo do conhecimento passa por aí.

 

As apresentações realizadas no final de janeiro, no Espaço Os Fofos Encenam, fazem parte do projeto itinerante por sedes de outros núcleos da cidade de São Paulo. A caravana grega em seu sincretismo já passou pela Vila Maria Zélia, casa que o XIX de Teatro cohabita (zona leste); pelo Espaço Pyndorama, da Companhia Antropofágica (zona oeste); e pelo Sacolão das Artes, da Brava Companhia (zona sul). Os endereços seguintes são os dos grupos Pombas Urbanas (zona leste), em março; Paidéia (zona sul), em abril; e Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes (zona leste), em maio. Nessas “bordas” e “centros” borrados especialmente após a implantação do Programa de Fomento ao Teatro (2002), a esperança é que uma tensão proativa possa ser celebrada na interlocução com experimento de polissemia tão radical.

 

(21 de fevereiro de 2011)

 

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Atores:
Ana Chiesa Yokoyama, Antonio Salvador, Gisele Petty,Gustavo Xella, Jean Pierre Kaletrianos, Leonardo Antunes, Natacha Dias

 

Coro:
Hilda Gil, Martha Travassos, Vera Monteiro e Vera Sampaio

 

Figurinos:
Carol Badra e Márcio Medina

 

Direção musical:
Gregory Slivar

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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