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Valor Econômico

Fazer arte com Flávio Império

7.6.2011  |  por Valmir Santos

Teatro: Exposição explora o legado múltiplo do cenógrafo e arquiteto, permitindo que o público se exercite na serigrafia.

 

3, 4 e 5/6/2011, Caderno Eu & Fim de Semana (p. 27)

 

Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Na era das especializações de saberes e fazeres, entrar em contato com o pensamento e a obra do arquiteto, professor, desenhista, gráfico, pintor, cenógrafo e figurinista Flávio Império (1935-1985) é dar as mãos à nobreza do artesão transposta a uma filosofia de vida. Artífice de criações antológicas nos anos 1960 e 1970, em espetáculos teatrais dos grupos Oficina e Arena, em shows musicais de Maria Bethânia e do grupo tropicalista Doces Bárbaros, além de mestre formador de algumas das gerações que passaram pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, por tudo isso, mas não só, ele é o homenageado da nona edição do Projeto Ocupação, que será aberto na próxima quarta-feira no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo.

 

Em certa ocasião, Império fez a anotação seguinte, como que intuindo seu legado: “O teatro me ensinou a vida; a arquitetura, o espaço; o ensino, a sinceridade; a pintura, a solidão. O teatro me fez amigo da multidão. A arquitetura me fez amante da terra, da água, do ar, da lua, da cor, da matéria, do fogo, do som. O ensino me fez aluno da mansidão”.

 

Em vez de elencar suas obras propriamente ditas, a curadora Vera Hamburger faz jus à vocação experimental do tio e convida o visitante a conhecer o processo artístico pelo lugar do ateliê. Também arquiteta e cenógrafa, ela propõe um recorte radical com foco na atuação de Império em serigrafia, técnica secular de impressão de desenhos de cores planas através de um caixilho com tela. “A ideia básica é recuperar uma coisa que ele mesmo fazia nas suas exposições: as pessoas vão lá não apenas para ver arte, mas para fazer arte.”

 

São incorporadas 16 matrizes serigráficas originais concebidas cerca de 30 anos atrás, transformadas, pela ação do tempo e pelo acaso criativo, em “quadros” que servirão de suporte ao público para, por exemplo, moldar e pintar camisetas e pendurá-las em varais. Nesse quintal-ateliê, as únicas obras elencadas de fato são as gravuras com temas voltados aos festejos juninos em celebração aos santos rebatizados de Sou João, Sou Pedro e Sou Antônio. São reproduções em maior escala sob o teto de bandeirinhas coloridas.

 

A gravadora e desenhista Renina Katz, de 85 anos, de quem Império foi aluno e professor-assistente na FAU, diz que ele se apropriava da serigrafia como técnica ideal quando desejava aplicar o sentido de seriação. “Imprimia sobre qualquer suporte, papel, tela, superfície transparente. Ele mesmo preparava as matrizes. A intenção era colocá-la ao alcance de qualquer um, porque não tem mistério, era só aprender a fazer, como o sujeito que pega o galho de árvore e transforma em escultura. A serigrafia era mais um instrumento para pessoas botarem para fora o seu imaginário, e ele fez isso lindamente”, afirma.

 

Flávio Império, que nasceu e morreu no bairro paulistano do Bixiga, tinha predileção pela forma tridimensional do espaço. À vasta produção pictórica e gráfica, ele somou as artes cênicas como território profícuo. Cenografou montagens históricas como “Roda Viva”, de Chico Buarque, em 1968, para o Oficina de José Celso Martinez Corrêa, e “Arena Conta Zumbi”, de 1965, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, para o Arena. Seu contemporâneo de contracultura e resistência à ditadura militar, o cenógrafo Helio Eichbauer, destaca o método intuitivo, a clareza para com o desenho, o domínio raro sobre a cor no diálogo com a luz, o pendor de Império para a arquitetura cênica.

 

Responsável pelo espaço desenhado para a Ocupação, Eichbauer lembra de Império como um operário das mãos. Em carta fictícia endereçada ao amigo e vertida para o catálogo, faz uma ode aos trabalhadores que sujam as mãos, como os excelentes pensadores gregos, que na maioria tinham pais marinheiros, fazendeiros e tecelões. “Os meninos que fomos participaram ‘de espetáculos de fundo de quintal’, construções improvisadas ‘com cortinas de cobertor e pregadores nos varais’; escapamos dos videogames, das musiquinhas eletrônicas, da parafernália digital, que têm levado a imaginação para o brejo. O teatro nos acompanha desde a infância, o de cartão, os bonecos, os fantoches de praça. Foi nessa Caixa de Mágico que você exerceu seu enorme talento.”

 

Os integrantes do conselho curador da Sociedade Cultural Flávio Império, criada em 1987, dão a medida do seu patrimônio humanista: Amélia Império Hamburger, Celso Nunes, José Mindlin, Myriam Muniz, Maurício Segall, Modesto Carvalhosa, Sábato Magaldi e Sérgio Ferro.

 

Ocupação Flávio Império. De 2 de junho a 17 de julho. De terça a sexta, das 9h às 20h; sábado, domingo e feriados, das 11h às 20h. Entrada franca. Instituto Itaú Cultural (avenida Paulista, 149, tel. 0/xx/11/2168-1776/1777).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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