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contracena

Fio tênue entre o inspetor e o impostor

18.9.2011  |  por Valmir Santos

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“O homem não teme nada quando ri!”

Púchkin

 

Por Valmir Santos

 

Na falta de tramas palacianas matriciais na sua literatura dramática – à maneira de um Shakespeare, por exemplo –, cabe ao teatro brasileiro vasculhar o chão da senzala, os cômodos da casa-grande, os corredores e os gabinetes da administração para colocar o poder em xeque diante dos ritos e vícios públicos e privados. Afinal, nossa modernidade nos palcos conta pouco mais de 60 anos, um piscar de olhos se comparada às tradições seculares das artes cênicas em certos cantos do mundo.

 

Ao apropriar-se do clássico O inspetor geral, de Nikolai Gógol, o Teatro Popular de Ilhéus (TPI) exercita uma espécie de antropofagia com causa. Subverte as artimanhas do andar de cima com as ferramentas e a poética da cultura popular. Evoca o cordel, a manipulação de bonecos e os folguedos para deglutir o sistema com a sofisticação da sátira universal (trata-se da primeira incursão do autor russo pela dramaturgia no longínquo ano de 1836, em pleno regime czarista). O resultado é um espetáculo com liberdade e ironia para ler as contradições de seu tempo e lugar. No caso, o município-berço no sul da Bahia e o contexto das reviravoltas institucionais transcorridas desde meados da década passada, impulsionadas pela consciência e mobilização dos moradores contra a corrupção.

 

O enredo de Gógol vem a calhar não só pela alegoria cômica, apesar da tristeza que encerra o espelhamento humano disforme, mas pelos fatos transbordantes da história recente de Ilhéus e, por extensão, de boa parte do território brasileiro. Entre as causas do impeachment factual do prefeito, em 2007, estão o desvio de verbas e o nepotismo. Na montagem anterior do TPI, Teodorico majestade – as últimas horas de um prefeito, de 2006, o autor e diretor Romualdo Lisboa já antevia o desfecho provocado pela revolta popular nas ruas. Trata-se de um raro exemplo da cena brasileira em que o conteúdo absorve o calor da hora do noticiário sem sucumbir ao oportunismo das diferenças partidárias de turno. Os criadores souberam preservar o senso de pesquisa que aprenderam a nutrir em mais de 15 anos de trajetória e não chafurdaram a forma e a linguagem no lamaçal das denúncias. Afinal, “todos nós estamos na lama, mas alguns sabem ver as estrelas”, como escreveu Oscar Wilde.

 

A arte transcende o protesto, conferimos em Teodorico majestade. Esse perspectivismo traduz o sentido de vigilância do núcleo para não perder de vista o seu projeto artístico continuado. Por isso a coerência com que Gógol lhe atravessa o caminho. A comédia realista é acrescida de camadas de caracterização fabular, como na gestualidade quebrada das interpretações, em referência à pantomima ou à animação; no figurino de base crua que equipara as funções e castas burocráticas; e no espaço cênico capitaneado por painéis com estampas de xilogravuras saltando das páginas do cordel feito os personagens que os atores trazem à tona. Aldenor Garcia, Elielton Cabeça, Ely Izidro, Guilherme Bruno, Hermilo Menezes, Potira Castro, Rogério Matos, Takaro Vitor e Tânia Barbosa carregam uma expressão nata brejeira, o olhar aparvalhado, a máscara codificada do grotesco. Alguns remetem de pronto à figura do bufão que vem para contradizer e não para explicar.

 

Pensar oralidade é pensar música. O cancioneiro é fortemente incorporado à identidade do grupo. Os intérpretes correspondem aos brincantes em sua totalidade: uma presença capaz de triangular com o espectador e os instrumentos musicais sem desequilibrar o compasso da ação física e das pelejas verbais. A transcriação do texto por Lisboa alinhava falas/estrofes em sete versos, suscitando uma escuta em espiral para a comédia de erros precipitada diante de nossos olhos.

 

A estrutura narrativa e os procedimentos da encenação permitem divisar nesse Inspetor geral a atualidade dos costumes, a cultura do jeitinho, o coronelismo da Ilha Bela paródica, mas nem tanto. O mandatário, a primeira-dama, os secretários e todos os apaniguados são sacudidos pela malícia de um impostor que os faz de títeres com a mesma moeda. A contundência temática desperta a crítica e convida à autocrítica da sociedade em relação ao desvio de caráter das autoridades eleitas e à mal disfarçada cumplicidade do dito cidadão comum que também corrobora escorregadelas em seu cotidiano, reforçando o ciclo vicioso que não começou ontem e não vai acabar amanhã. A bile faz parte do mecanismo da comédia.

 

Na versão baiana para o clássico, os comentários entremeiam diálogos e chamam a plateia interlocutora a perceber os arranjos, os conflitos de interesses. Esse dispositivo épico fica patente desde o início da apresentação, quando o ator que interpreta Zito (Vitor), o mais fuleiro dos personagens, funcionário de pensão, “desprende” do varal os corpos, até então estáticos, e sopra-lhes a vida em ficção para a história que virá. Zito tem a ver com o arquétipo de João Grilo, de Pedro Malasartes. “De alguma maneira, ele retrata o povo: se corrompe, quer matar a fome e alçar novos voos, mesmo que tenha que fazer pequenas trapaças”, afirma Lisboa. “Também o ator que faz o impostor/inspetor traz as marcas desse povo visto sem romantismos, que aproveita determinadas ocasiões para tirar proveito próprio.”

 

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Em Teodorico majestade, era ele mesmo, o autor e diretor, quem subia ao palco na abertura para animar os seres de carne e osso dependurados no varal. Na nova montagem, ele delega essa gênese simbólica ao mediador colado à imagem do palhaço que vira tudo e todos do avesso. A opção relativiza o elogio presumido do povo. “Aquilo que em Teodorico tinha um aspecto de vingança, em O inspetor é quase que uma expiação”, raciocina Lisboa, que tem em Brecht um farol.

 

Conhecer o trabalho e o pensamento em cena do Teatro Popular de Ilhéus reafirma a capacidade dos artistas do interior de contracenar de cabeça erguida com os pares das metrópoles do país. Por meio das duas recentes criações exibidas em São Paulo, no curto prazo de três meses, de maio a julho de 2011, o núcleo diz a que veio, ética e esteticamente, desde o seu quintal. Pisa o imaginário e a realidade da região cacaueira para gerar mais perguntas que respostas. E faz a arte gritar elaborada no riso.

 

(19 de setembro de 2011)

 

>> Temporada de O inspetor geral em São Paulo, de 8/10 a 27/11

 

>> Teatro Popular de Ilhéus, um dos quatro núcleos residentes da Casa dos Artistas

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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