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Reportagem

Fernando Peixoto

15.1.2012  |  por Valmir Santos

Ele morreu na última madrugada. Fernando Peixoto tinha 74 anos. O ator, diretor, dramaturgo, jornalista, tradutor e historiador de teatro estava internado no hospital São Luiz, em São Paulo, devido a um câncer no intestino.

A Editora Hucitec, com a qual mantinha vínculo e por lá publicou a maioria dos seus livros, informa em nota que o corpo será cremado amanhã, às 11h, em Vila Alpina, em São Paulo.

Peixoto nasceu em Porto Alegre, colheu o período de inquietação cultural da cidade entre os anos 1950 e 1960. Foi aluno de Gerd Bornheim e do italiano Ruggero Jacobbi no curso de Arte Dramática da UFRGS. Integrou o Grupo Teatro de Equipe (1958-1962), ao lado de Mario de Almeida, Paulo José, Paulo César Peréio e outros. Então casado com Ítala Nandi, mudou para São Paulo em 1963, ambos passando a atuar no Oficina de Zé Celso.

O artista atravessou a ditadura civil-militar (1964-1985) escrevendo biografias de Brecht, Maiakovski e Sade; traduzindo Gorki, Brecht, Sartre. Ele pensou o teatro e criou para essa arte intensamente, tendo flertado ainda com roteiros para o cinema e a televisão.

O trecho a seguir faz parte de um dos capítulos do livro Teatro em pedaços (Hucitec, 1980), que reúne artigos e ensaios produzidos entre 1958 e 1977. Intitulado Teatro e cultura contemporânea, é a transcrição de conferência homônima realizada na Assembleia Legislativa gaúcha em 3 de outubro de 1975, da qual também fizeram parte Ivo Bender, Plínio Marcos, Paulo Pontes e André Forster.

São argumentos que, ponderado o contexto daqueles anos 1970, ainda carregam centelhas para refletir a produção teatral do Brasil quarenta anos depois. Palavras significativas do lugar que Fernando Peixoto sempre falou, dentro ou fora de cena.

Peixoto em ensaio de Na selva das cidades (1967), no Teatro Oficina

Peixoto em ensaio de Na selva das cidades (1967), no Teatro Oficina

Creio que o teatro brasileiro teria que buscar quatro caminhos, sobretudo: um seria o realismo, não como coisa estreita, como reprodução realista fotográfica da vida cotidiana. Enfim, não me refiro ao realismo enquanto escola literária, a um tipo de espetáculo, de dramaturgia que busca apenas a expressão de um universo psicológico, onde os personagens são indivíduos isolados do mundo em que vivem. Digo realismo numa concepção um pouco mais ampla. De confronto com a realidade. Acho que esta é uma das qualidades da arte. E é uma das grandes coisas que justificam nossa condição de artistas: confrontar e discutir a realidade, colocar em questão esta realidade. A intenção é refletir sobre aquilo que existe ao nosso redor. Este confronto com a realidade, a censura praticamente cortou. E em vez dele temos a fuga da realidade, temos o espetáculo que mistifica, que ilude. E que faz parte desta fábrica de ilusões montada, em termos de palco brasileiro.

Um outro aspecto, que chamaria a atenção, que acredito ser o caminho, junto com este, é o aspecto crítico. Acho que a arte só tem sentido se é uma atividade crítica, se dirige-se ao debate, se provoca reflexão no espectador. Para mini o espetáculo tem esta função. A forma dele ser consequente, de realmente envolver e respeitar o espectador. Uma das coisas que não acredito mais, que a história já nos mostrou que é errado, é o tipo de espetáculo que coloca a verdade no palco e fica dizendo esta verdade ao espectador. Isto não tem mais sentido. Nós não temos uma verdade no palco para dizer aos espectadores. Nós não estamos aqui como nos palcos para dizer soluções, mas para encaminhar soluções. Através do livre debate de ideias.

Creio que a grande função do teatro, sobretudo neste momento histórico, seria de provocar o debate, a reflexão a troca de ideias, porque só através disto poderemos conhecer mais a nossa realidade e poderemos realmente transformar a nossa realidade.

Este teatro crítico também não é permitido hoje, o que é permitido é aquele que não discuta valores pré-estabelecidos, ou seja, um teatro que considere tudo como eterno, imutável e sagrado.

Um terceiro aspecto que já o Brasil deveria se voltar seria ser além de realista crítico, é ser nacional. Todo processo social do país tem sido um processo de colonização. O nosso teatro, hoje mais do que nunca, sofre um processo de colonização total. Não só a importação de textos, que também tem sua origem na dificuldade de montar um texto brasileiro e é mais fácil tratar grandes problemas políticos com texto estrangeiro, a censura é até bastante mais compreensível por razões óbvias, com relação a texto estrangeiro. Também neste aspecto o teatro tem sido descaracterizado enquanto espetáculo nacional. Não há condições de se realizar, realmente não tem sido realizado. Importa-se, inclusive, espetáculos de fora. Ou seja, o que chamei uma vez de “teatro xerox”. Você apanha um espetáculo montado em outro lugar, reproduz inteiramente a encenação aqui no país.

Outro aspecto, além de realista, crítico, nacional, acredito que os caminhos do teatro brasileiro só adquirem sentido se forem populares. Se nos ligarmos à cultura popular, se buscarmos as bases populares e realizarmos uma cultura ligada a estas raízes. Sem estas raízes nós nos perdemos em abstrações, numa macaquice mal feita dos produtos estrangeiros. E fazemos um teatro que deve mais ou menos refletir isto que o Ivo Bender acabou de colocar. Ou seja, há um desinteresse do público sobre ele. Evidentemente nós não somos povo, nenhum de nós aqui é operário nem camponês, entretanto acho que o conceito de povo deveria também sofrer uma justa e dialética compreensão. O teatro popular, isso seria uma discussão muito longa, não é só o teatro feito pelo povo, nem se confunde também com a manifestação folclórica. O povo não encontra condições de produção, os meios de produzir não estão em suas mãos, embora ele faça teatro nas feiras, embora ele faça teatro no Nordeste, em condições incríveis, um teatro estranhíssimo, inclusive, fascinante em certo aspecto e ao mesmo tempo pobre em outro sentido, primitivo. Mas a classe média, com todas as indecisões, contradições, variações que ela possui, também nós, os intelectuais, temos uma tarefa: assumir o ponto de vista do povo, porque sem assumir este ponto de vista não vamos levar nossa cultura para a frente e sim para trás. Podemos ser úteis no nível de nos negarmos enquanto classe, voltarmos nossa cultura como uma arma que nos explique a nós mesmos, através de uma implacável contestação de valores falsos.

Este tipo de teatro popular também não temos tido condições de realizar ultimamente. Nós não temos condições de atingir o público popular como consequência da dificuldade de produção dos últimos anos. O povo desapareceu da cena. O povo, sempre quase que praticamente esteve ausente da plateia, mas ele estava presente no palco, a dramaturgia lançada pelo Teatro de Arena, sobretudo, lançada em 1957 ou 1958, até o grande período do teatro brasileiro, da dramaturgia brasileira, período inclusive que permitiu uma análise e uma pesquisa de uma forma de espetáculo brasileiro, uma forma de interpretação, uma forma de encenação, ligada às raízes brasileiras, esta aparição, esta presença do povo em cena desapareceu. Ela hoje aparece pelos cantos. Durante muitos anos aparecia como criado. Montei um espetáculo recentemente, o Um grito parado no ar [de Gianfrancesco Guarnieri], onde havia um personagem popular, que fazia um sucesso extraordinário, Euzébio, o contrarregra, que por uma série de circunstâncias virava ator.

Entretanto, muito depois, três anos após ter sido montado o espetáculo, é curioso pensar como o Euzébio, de Um grito parado no ar, era tão bem recebido pela plateia, pelo público; no fundo porque ele era exatamente o povo nesta imagem, ou seja, bom, simpático, honesto, generoso, modesto, puro, tudo certinho, mas era um personagem secundário, a problemática debatida na peça, também naquele momento, era uma problemática do pequeno burguês, o povo estava de longe quando Guarnieri, que é um exemplo bem claro da dramaturgia popular brasileira, quando ele escreveu Botequim, por exemplo, um personagem menos compreendido por todas as pessoas era o operário. A gente achava que aquilo não era verdade, que era repetição de fórmulas, e é muito curioso que o último espetáculo do Guarnieri, Me dá o Mote!, tenha sido bastante atacado em São Paulo, por alguns setores da crítica, não enquanto espetáculo ruim, nem enquanto defeitos que o espetáculo possui e alguns bastante graves, mas foi atacado por bastante pessoas, por uma razão só: porque falava em povo! Por que voltar a falar do povo? Muitos disseram isso. “Isto é uma coisa que não cabe a nós, é uma coisa que está distante, é uma coisa que não interessa mais”. Chegamos a este ponto. Mas estes críticos não perdem por esperar. A época da renda e da perfumaria não pode durar. O que está aí, dominando o país hoje, é histórico e portanto transitório. Não é eterno.

Este povo que não é mais protagonista, coloca este outro aspecto do teatro brasileiro. Levados pelas existências históricas que motivaram a criação da censura, levado pela rigidez, pela arbitrariedade do próprio exercício da censura o teatro brasileiro está deixando de cumprir estas quatro tarefas, que são uma só, uma coisa só: deixando de confrontar a realidade, deixando de ser crítico, de ser nacional e de ser popular. O que resta, deixando-se tudo isto de lado, é bastante lamentável. Este “lamentável” é a nossa necessidade de hoje. Este debate mostra inquietação e insatisfação. Este é um instante de especial importância para, sem medo, a gente desabafar o que pensa, problematizar nossa prática, encontrar caminhos para uma cultura de resistência.

(Peixoto, Fernando. Teatro em pedaços. São Paulo: Hucitec, 1980, pp. 341-347).

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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