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Reportagem

A arte de ir além dos espetáculos [FIT-BH]

1.7.2012  |  por Valmir Santos

A 66º edição do Festival de Avignon, prevista para julho de 2012, tem como identidade visual a silhueta de um homem com braço direito erguido, dedo em riste, vociferando com um megafone na mão esquerda. A jornada francesa sintoniza com o espírito do movimento global “ocupe” em praças, parques e calçadões. Concerne também ao pioneirismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em meados dos anos 1940, o ator e diretor deslocou o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses para uma cidade de contornos medievais, cercada por muralhas, ao sul do país, onde o principal espaço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada como residência pontifícia no século XIV.

Foi a partir da iniciativa de Villar que a opção não convencional passou a disputar holofotes com o palco italiano, influenciando a percepção dos criadores e do público para todo o sempre. Evocar Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afetar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria ser, em suma, sua razão de existir.

Sentimos falta desse ímpeto proativo no panorama atual dos principais festivais no Brasil, sejam eles nacionais ou internacionais. A década dos anos 2000, para ficar num recorte que nos é próximo, foi prodiga no aporte de recursos das leis de incentivo (públicos) combinado às verbas municipais, estaduais e federais. O período viu aflorar iniciativas afins nas agendas culturais de Brasília, São José do Rio Preto, Salvador e Recife, alinhadas ao time desbravador que já vinha com algum alento desde o final dos anos de 1980, início dos 1990: Londrina, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

A despeito da falta de políticas públicas mais assertivas quanto ao papel dos festivais brasileiros – a maioria dos organizadores gasta todos os neurônios para viabilizar economicamente suas programações até os 90 minutos do segundo tempo –, essas coordenações e respectivas curadorias ainda se revelam tímidas quanto ao papel de agitador cultural que poderiam assumir para si de maneira mais convicta, incisiva e continuada, à la Jean Villar.

Ou à la Nitis Jacon, a psiquiatra que inscreveu um modo singular de militância (arte + resistência) nos 44 anos do Festival Internacional de Londrina, o Filo, dos quais ela assinou a direção artística por mais de 30 anos, praticando e ensejando projetos de políticas públicas de cultura. Da fase amadora universitária à institucionalização, da mostra latino-americana à fase internacional mais abrangente, o encontro que transcorre na cidade do norte paranaense atravessou a ditadura militar e reafirmou, com a abertura democrática, a “evolução de uma consciência cada vez mais arguta da responsabilidade histórica da ação cultural”, como afirma a crítica Mariangela Alves de Lima1. Pode-se indagar que não é da alçada dos certames deflagrar tais predicados tangíveis aos governos. Mas a influência de um festival cênico sobre moradores e visitantes, sua propulsão ao ato coletivo, à vida comum, o credencia à apropriação desse ativo. Independe se realizado por organismos públicos, entidades sem fins lucrativos ou privadas.

Programar um festival tem muito a ver com ciência e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe liderada por articulador (ou mais de um) que se espera sensível e informado. Segundo Sidnei Cruz, que por duas décadas coordenou o projeto Palco Giratório, do Departamento Nacional do Sesc, elaborar atividades cênicas implica um exercício sistemático entre a regularização e a inovação. Esse conjunto de possibilidades depende do que o lugar oferece, das condições socioculturais, dos contextos político-econômicos, das demandas e potencialidades da sociedade civil. “É importante perceber que a ação política de fato a ser agenciada é aquela que mergulha na negociação complexa da articulação social de diferenças culturais, influenciando as redes de valores e significados que constituem o patrimônio consciente e inconsciente do corpo de uma sociedade”2.

Nitis Jacon não perdia tempo com platitudes no texto do programa de mediação com o público. A cada ano ela escrevia um editorial em que levantava questões, expressava seu ponto de vista sem peia. Vide o trecho do documento vindo à luz naquela memorável edição de maio de 1992, a 24ª, a cinco meses do impeachment de Collor:

“Se o indivíduo, no melhor dos regimes políticos, se conformar à segurança instituída, a uma vida sem buscas, sem desejos, sem dúvidas e sem perguntas, estará condenado ao tédio e à mediocrização de sua existência. É preciso oferecer-lhe a dúvida, a inquietação, o mistério do ainda desconhecido, a desconfiança da concepção paranoide da verdade incontestada. Estimular sua humanidade, sua expectativa, seu espanto, seu confronto com a diferença e o oposto. (…) O Festival Internacional de Londrina se propõe aos artistas e à população como alternativa à mediocrização política e intelectual e como referência de perseverança e lucidez quando escasseiam motivos para a esperança”3.

Apesar de a idealizadora seguir como presidente de honra do Filo, as edições recentes deixam a desejar em relação à contundência estética e política de outrora.

Considerando-se a linha de tempo da década passada, não identificamos uma atuação orgânica entre os festivais citados quanto ao estabelecimento de conexões e rupturas nos campos artístico, político e social. Via de regra, as coordenações gerais, direções artísticas e curadorias ficam reféns da programação em si, raramente colocada em transversal ou capaz de adquirir capilaridade não protocolar junto à comunidade. Os esforços são empreendidos para trazer alguma companhia bem cotada no circuito europeu ou pinçar algum ícone redivivo ou recente. Esses procedimentos são legítimos, evidente, mas não esgotam os desafios.

A escolha das criações brasileiras, igualmente, segue o faro dos programadores em visita a festivais ou temporadas. Costuma ser influenciada pela régua da recepção crítica em outras paragens. Apesar desse movimento, a tônica ainda é a da pouca margem para o desconhecido. Soa acomodado também o discurso da diversidade de formas, conteúdos e geografias, como se, com isso, isentasse os responsáveis pela empreitada de dizer a que veio quanto aos anseios e à memória do evento. A sua incisão crítica e autocrítica. A ambição sobre a prática e o pensamento do fazer teatral. O vínculo com o território a que pertence. A instigação dos criadores locais.

Outro exemplo de um festival longevo é o Porto Alegre em Cena, que há 18 edições tem o mérito de firmar uma porta permanentemente aberta aos países sul-americanos (ponte que Salvador, Uberlândia, São Paulo e Santos ergueram para si em mostras voltadas à região ibero-americana). Em toda edição, o público gaúcho depara com montagens da Argentina e do Uruguai, obrigatórias na percepção do diretor artístico e curador Luciano Alabarse, além de representantes de outras nações cotejados anualmente. Uma vez assimilada a difusão, como a prática de um festival pode interagir de maneira mais radical no fenômeno das trocas culturais e sociais? Houve ocasiões em que o festival construiu uma circulação de peças em mão dupla com Buenos Aires e Montevidéu. Perguntas: como lidar daqui para frente com esse legado?; qual a missão plausível na “maioridade”?

Vislumbramos que essa potencialidade pede mais ambição, por exemplo, no investimento em coproduções. O Núcleo de Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil já realizou dois projetos nesse sentido, com um espetáculo percorrendo as respectivas praças. Essa estratégia resultou saturada, entre outras razões, porque condicionava à circulação automática pelos respectivos calendários. Somos partidários da coprodução caseira, na qual um festival invista com dignidade e planejamento em artistas do seu pedaço, às vezes em simbiose com convidados de fora, e essa obra carregue o nome da respectiva cidade que a promoveu.

A rigor, programação não é problema nos festivais. As seleções são susceptíveis à valsa do que vem à baila. Mesmo as iniciativas que estão nos primeiros anos de paleta internacional defendem bem suas escolhas. Caso do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, na 12ª edição, e do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac de Salvador, que vai para a quinta jornada. A sensação de processos uniformes nestes e nos demais pares, no entanto, deriva das demandas em captar recursos patrocinados e da prioridade máxima delegada à composição da tabela de peças, coreografias e intervenções em detrimento de surpreender com ações ousadas que possam entrelaçar, também, coragem política, sociabilidades e linguagens da cultura.

No verbete “festival”, Patrice Pavis afirma que, às vezes, nos esquecemos de que o adjetivo também encerra o sentido de festa, referendando datas ou consagrações religiosas desde a Antiguidade, como Osíris no Egito e Dionísio na Grécia:

“Estas cerimônias anuais marcavam um momento privilegiado de regozijo e de encontros. Deste acontecimento tradicional, o festival conservou uma certa solenidade na celebração, um caráter excepcional e pontual que a multiplicação e a banalização dos modernos festivais muitas vezes esvaziam de sentido. (…) Este moderno ressurgimento do festival sagrado atesta uma profunda necessidade de um momento e de um lugar onde um público de ‘celebrantes’ se encontre periodicamente para tomar a pulsação da vida teatral, satisfazer às vezes a falta de ir ao teatro no inverno, e, mais profundamente, ter a sensação de pertencer a uma comunidade intelectual e espiritual encontrando uma forma moderna de culto e de ritual”4.

Pois de festa o Brasil entende. Cabe aos festivais consolidados abrir-se à incitação e exercer o protagonismo desde o seu quintal para o mundo.

* Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro. Consultor desta curadoria do FIT-BH, debutou na função de curador em 2011, no 14º Festival Recife do Teatro Nacional. Artigo publicado originalmente na FIT Revista 2004 (Belo Horizonte: 11º FIT-BH, 2012, pp. 98-101).

1 LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina – 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 10.

2 CRUZ, Sidnei. Palco Giratório: uma difusão caleidoscópica das artes cênicas. Fortaleza: Sesc-CE, 2009, p. 23.

3 JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina – 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 200.

4 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 166.

Por Valmir Santos*

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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