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Crítica

Galvarino expõe limites artísticos de sua causa

12.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Pierre Duarte

Em Galvarino, a verossimilhança é o norte. Quase tudo aconteceu como narrado e mostrado sob o ponto de vista da Compañía Teatro Kimen. Em cerca de um terço de espetáculo restitui-se por meio de texto, cenografia e atuações um realismo radical como há tempos não víamos em cena.

A cozinha de uma família mapuche – principal etnia chilena – é o ambiente onde mãe, pai e irmã aguardam a chegada do primogênito, o personagem-título. Ele saiu do país em 10 de setembro de 1973, véspera do golpe militar que depôs Salvador Allende. Ganhou uma bolsa de estudos do governo para fazer um curso técnico agrícola em Moscou.

Desde então, permaneceu na capital russa, onde se casou e teve filhos. De quando em quando, visitava os familiares da zona rural do sul do Chile. Como naquele setembro de 1993, em que a mãe lhe preparava a comida de boas-vindas. Dessa vez, porém, Galvarino não apareceu. Foi assassinado a pedradas por um grupo adepto do neonazismo.

Da data programada da chegada até a notícia oficial, a família penou para saber de seu paradeiro. A dramaturgia de Marisol Vega Medina, inspirada no relato dramatizado pelo escritor Juan Radrigán em El desaparecido (2004), captura a tensão da incerteza expondo o descaso do Ministério das Relações Exteriores para com o apelo de que acionasse a embaixada russa. Nenhuma das várias cartas endereçadas às autoridades foi respondida. O único aceno institucional foi para comunicar friamente a morte de Galvarino, abrindo novo ciclo para reaver seu corpo.

A encenação projeta trechos dessa correspondência sem interlocutor. Monólogo sobre a ausência que vai desidratando a formalidade e tornam cada vez mais incisivas as palavras dirigidas ao Estado, na base de que menos é mais.

Quem escreve é a irmã, interpretada pela também diretora Paula González, na pele de sua tia na vida real, Marisol Ancamil, irmã de Galvarino. O pai e a mãe são vividos por Elsa Quinchaleo e Reynaldo Cayufi, cidadãos mapuches não atores que, nos poucos diálogos que têm, falam em sua língua de origem, o mapudungún.

A atriz Paula González, diretora da obra chilena

Na parte final, a filha (na vida real sobrinha) irrompe em forte registro dramático ao expressar profunda indignação por causa da ação discriminatória tanto pelo ódio que vitimou o seu irmão como pela atitude ignóbil do governo então recém-saído do regime militar, ainda com o ditador Augusto Pinochet sob suas asas.

Apesar dos excertos ficcionais em parte das cartas projetadas no fundo do cenário, o Teatro Kimen orienta sua criação pela verossimilhança absoluta. Há pouca margem para operar outras manipulações inerentes à arte teatral devido à rigidez dos signos da verdade e da denúncia. Guardadas as medidas, é o que Sófocles e Eurípides fizeram com mais abertura em suas Antígonas de séculos atrás.

A contundência da obra também a aplaina. A imagem da caixa branca que emoldura o espaço cênico e a memória no centro do palco traduz os limites desse projeto que encerra a Trilogía Documental do Kimem, grupo ligado ao Teatro Universidad Mayor – as peças anteriores são Ñi pu tremen – Mis antepasados (2008) e Territorio descuajado – testimonio de un país mestizo (2010).

Galvarino mobiliza uma causa nobre, mas sua ambição de linguagem fica aquém. O ruído mais explícito, neste sentido, vem do fio dependurado que atravessa o teto da moldura e traz em sua ponta uma lâmpada incandescente até a proximidade da mesa de jantar. Ou o desenho de luz que sugere a alvorada e o pôr do sol atrás da janela. Contudo, o que sobressai mesmo é o guarda-chuva da translação histórica. Ponto.

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas. 

Ficha técnica

Compañía Teatro Kimen e Teatro Universidad Mayor

Direção: Paula González Seguel

Dramaturgia e codireção: Marisol Vega Medina

Com: Reynaldo Cayufilo, Elsa Quinchaleo e Paula González

Assistência de cena: Alejandra Flores

Desenho integral: Catalina Devia

Coordenação técnica: Natalia Morales

Cenografia: Rodrigo Iturra

Música: Evelyn González

Interpretação musical: Ül Kimen

Desenho gráfico e fotografia: Danilo Espinoza

Assessoria de imprensa: Bernardita Ponce

Produção: María Eugenia Valenzuela

Financiamento: Proyecto TUM 2012, Escuela de Teatro Universidad Mayor, Fondart Regional 2012, Consejo Nacional de la Cultura y las Artes


Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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