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Crítica

Grupo de Ilhéus revolve história e vai ao drama

30.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Flávio Rebouças

Quando a historiografia oficial encontra ou impõe dificuldades para ler as letras sulcadas na folha de papel, o que dirá de imagens, pensamentos e atitudes inscritos na memória ancestral da fala e do corpo do indivíduo e da coletividade? O Teatro Popular de Ilhéus percebe o silogismo em 1789, uma lupa sobre os registros de sua cidade-certidão a desvelar uma daquelas tomadas de consciência pública das quais se faz vistas grossas no retrovisor: a sublevação de centenas de escravos do Engenho de Santana no século XVIII, atual distrito Rio do Engenho, na mesma zona rural.

O modus operandi e o modus vivendi daquela revolta conotam clareza e raciocínio que, mais de duzentos anos depois, as sociedades contemporâneas ambicionam mesma síntese. Em desvantagem com o aparato do exército que defendia o interesse da casa-grande, homens e mulheres, jovens e velhos, escolheram o refúgio do quilombo, na mata fechada, e para lá carregaram todas as ferramentas necessárias ao processamento da cana-de-açúcar na fazenda. Cerca de dois anos depois, enviaram uma carta ao senhor do engenho ousando condicionar a rendição ao atendimento de reivindicações trabalhistas, entre elas o direito à folga, à brincadeira e ao canto. O trabalho escravo estava a décadas da chamada Abolição de 1888.

Parte do elenco do Teatro Popular de Ilhéus

A equipe de criação do diretor e dramaturgo Romualdo Lisboa contou com alentada interlocução do historiador Marcelo Henrique Dias para materializar o desejo que o grupo nutria havia dez anos de encenar a luta do Engenho de Santana. A parceria é refletida no embasamento documental do período de colonização portuguesa, boa parte dele acessado na fonte original: o acervo da coroa do outro lado do Atlântico.

O roteiro épico se apropria dessa arqueologia enquanto gênero musical assumido desde o subtítulo: “ópera afro-rock sobre a história do Engenho de Santana”. Quanto à estrutura do texto, é significativo o salto para o drama em relação às obras em repertório, Teodorico Majestade: as últimas horas de um prefeito (2006) e O inspetor geral: sai o prefeito, entra o vice (2010), comédias populares também intercaladas em versos e canções, com a tessitura do cordel, e inspiradas em fatos históricos municipais – sendo a mais recente delas uma adaptação do clássico de Gógol.

O tempo de investigação maturou as frases versificadas. Estamos agora diante de um drama, em clave mais grave, em que a narrativa modula episódios de 1789 a 2089, ou seja, uma gangorra de três séculos pontuada pela ação do presente.

Enquanto a comunidade negra demarca resistência às chibatadas em volta da moedeira de cana de uma sesmaria do sul da Bahia – no mesmo ano em que a Revolução Francesa eclode por liberdade, igualdade e fraternidade –, na fictícia reta final do atual milênio, na mesma localidade, 300 operários articulam greve contra a exploração de mão de obra barata, salários atrasados e demissões pela fábrica de chocolate de capital estrangeiro que por lá aportou sob isenção fiscal, rapinou e está em debandada. O manifesto que eles escrevem após uma assembleia conclama uma sociedade mais justa e igual, eco visionário dos protestos por cidadania no Brasil de hoje.

Esse cruze de fragmentos sofistica a narrativa a tal ponto que, da metade em diante, a sensação é de que construiu-se unidade entre tempos e espaços sobre “a terra do cacau”, equilibrando os atos e as suas consequências ao longo da história. Fardos com as sementes desse fruto tão caro ao imaginário dos romances de Jorge Amado compõem a topografia do cenário num tablado dominantemente vazio. Os volumes ganham diferentes configurações conforme empilhados pelos atores. Projeções em vídeo, por sua vez, indicam o maquinário industrial na vida moderna ou exibem um relato verídico de intolerância.

O didatismo excede na hora de projetar o título de cada quadro, acompanhado de enunciado palavroso, gerando ruído na fruição em vez de costurá-la com brevidade. O figurino base (camisa e calça brancas, faixa preta no tronco ou na cintura e pano enrolado na cabeça à maneira de um turbante), a máscara de argila nos rostos (sobreposta por pontilhados brancos e traços vermelhos), o desenho de luz em transição para a sombra e a música coral e percussiva ao vivo são códigos que já situam o espectador quanto às épocas.

Os arranjos e a direção musical de Elielton Cabeça pulsam a apresentação. Ele mesmo cantor e tocador de vários instrumentos, ao lado da voz de Eloah Monteiro e da percussão de Marinho Rodrigues, o trio funciona como a válvula performativa. Cabeça e Eloah são atores-cantores com o espírito de presença de um Tom Zé, um Itamar Assunção ou um Arrigo Barnabé, destilando ironia e indignação nos versos falados de Lisboa. Nas primeiras sessões realizadas na Tenda do TPI, no Aterro da Avenida Soares Lopes, a deficiência acústica do espaço – um circo – ainda não havia sido equalizada e o volume do som cobria as vozes.

Boa parte dos 20 atuadores ainda carece de treinamento físico para os movimentos e ações demandadas. A elocução ainda soa inexpressiva, compensada nos números corais. Apesar disso, o conjunto evidencia a gana própria dos amadores, acentuando realismo à condição dos oprimidos da peça e, ao mesmo tempo, a esperança que os movem a criar um agenda pessoal paralela para dedicar noites e finais de semana a essa arte. Ressalvam-se os atores Ely Izidro, Geisa Penha, Iara Colina, Néia Dendê, Neide Rodrigues, Odara Souza, Takaro Vitor e Tânia Barbosa, alguns deles integrante do TPI faz anos, lapidados ou talentosos por natureza. A consciência de ofício só faz melhorar quando o trabalhador da arte encontra possibilidades concretas para o sê-lo, fazendo por onde. É o caso desse grupo baiano formado há 18 anos.

A irregularidade no desempenho é sintomática dos modos de criar e produzir teatro de pesquisa em Ilhéus, condição inerente às cidades do interior do país em que o treinamento é descontínuo, para começar as dificuldades. Um coletivo que se propõe a problematizar os discursos históricos sabe das pedras que vão surgir no meio do caminho e no quintal.

Mãe Hilsa agrega cultura e religiosidade afro-brasileira

Impossível apreender 1789 estritamente pela eficiência técnica dos homens e mulheres que ali estão. Suas relevâncias estética e comunitária são aprofundadas quando o TPI estende esse projeto ao secular terreiro de candomblé Matamba Tombenci Neto, no bairro da Conquista. Hilsa Rodrigues, ou Mãe Hilsa Mukalê, e alguns dos seus filhos de santo e de sangue têm participações cruciais na obra. Seus antepassados foram escravos do Engenho de Santana. (Inescapável citar Bença, de 2010, em que o Bando de Teatro Olodum, dirigido por Márcio Meireles, saúda a religiosidade afro-brasileira e a sabedoria dos mais velhos).

A ancestralidade adquire força vital nas passagens rituais que envolvem cantos e danças, estas sob coreografia de José Carlos Santos, o Zebrinha. O diretor artístico do Balé Folclórico da Bahia e membro do Bando de Teatro Olodum joga com os limites que alguns corpos emanam ou os transcendem nas potencialidades natas que oferecem, como nas imagens onduladas rentes ao chão ou suspensas em direção ao céu de lona. Quando Mãe Hilsa, de 79 anos, acolhe um menino prestes a levar uma surra do administrador ou irrompe no encerramento dizendo que não alisou banco de universidade, mas é formada na escola da vida, tal projeto artístico e cultural ressignifica verdades que não se apagam.

>> O jornalista viajou a convite do Teatro Popular de Ilhéus e do Instituto Arapyaú de Educação e Desenvolvimento Sustentável.

Ficha técnica

Texto e direção: Romualdo Lisboa

Consultoria dramatúrgica: Marcelo Henrique Dias

Música e direção musical: Elielton Cabeça

Coreografia: Zebrinha

Com: Aldenor Garcia, Antônio Melo, Ed Paixão, Elielton Cabeça, Eloah Monteiro, Ely Izidro, Geisa Pena, Guilherme Bruno, Hilsa Rodrigues, Iara Colina, Indira Rodrigues, Marinho Rodrigues, Naiane Rodrigues, Néia Dendê, Neide Rodrigues, Odara Souza, Pablo Lisboa, Rogério Matos, Takaro Vitor e Tânia Barbosa

Músicos: Elielton Cabeça, Eloah Monteiro, Marinho Rodrigues, Pablo Lisboa e elenco

Depoimento: Bernadete Ferreira

Produção: Pawlo Cidade

Comunicação: Karoline Vital

Assistente de produção: Gilberto Moraes

Projeto audiovisual: Hermilo Menezes

Edição de vídeo: Flávio Rebouças e Hermilo Menezes

Operação de vídeo e luz: Ruan Lisboa

Preparação vocal: Eloah Monteiro

Cenografia e objetos: Romualdo Lisboa e elenco

Figurinos e adereços: Tânia Barbosa e elenco

Iluminação: Ely Izidro

Maquiagem: Guto Pacheco

Costureiras: Ivonildes Maria, Elenita Sena, Aldelita Silva e Ivonete Rodrigues

Projeto gráfico: Maxmídia

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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