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Crítica

A dança interior de Maria Cloenes

22.8.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Pedro Bastos/Solus

Em sua segunda sessão, ainda como trabalho em processo, Submersa expõe complexidades de conteúdo e abordagem dignos de nota. O solo em dança-teatro apresenta uma intérprete criadora segura, Maria Cloenes, quanto ao que deseja falar. A saber, evocar reminiscências das enchentes na infância. São episódios de calamidade que a marcaram por aprender, desde cedo, a contornar as instabilidades do existir, outrora causadas pelas águas das chuvas que faziam transbordar o rio vizinho e invadiam sua casa.

Maria Cloenes escala imóvel em imagem da infância

Na abertura do espetáculo, sob direção de Marcos Nauer, a bailarina Cloenes surge no plano baixo, arrastando-se como uma borboleta saindo de seu casulo, um vestido de noiva ou afins. O rastejar não demora, e ela já escala uma estante de prateleiras vazadas. Tal objetivo aparentemente invasivo na cena despojada, acaba revelando-se orgânico ao contribuir para a leitura do que se passa dentro de uma casa inundada: suspender os móveis e, imaginariamente ou era assim com sua família, escalar os mais resistentes até o limite do teto.

As ações e movimentos gravitam em torno dessa estante. Cloenes galga cada prateleira, enganchando-se parcimoniosamente e suscitando, em vários momentos, a possibilidade de queda. A cada prateleira, ela passa para a seguinte os objetos remanescentes, tentando salvar a si e o pouco que a água não engoliu.

Bailarina faz recortes sobre instabilidades do existir

Quando atinge o topo do totem cenográfico, a bailarina fica em pé e amplia o suspense com o seu equilíbrio. Nesse rito de ascensão, do chão ao céu, seu figurino é descamado, um vestido atrás do outro, panos vindo abaixo a cada passo ou estação de sua subida, denotando a transformação da menina em mulher. A escalada intuída como evolução e negociação permanentes de uma guerreira.

Os traços mestiços de Maria Cloenes, o colorido dos figurinos, a delicadeza dos objetos e a atmosfera ritualística levam a referências sobre o realismo fantástico característico da literatura latino-americana. Submersa remete às mulheres da Macondo imaginária de Gabriel García Márquez, a cidade onde chove por cinco anos em Cem anos de solidão. A liberdade com que os criadores do espetáculo se apropriam dessa memória de infância tem a ver com essa disponibilidade poética ao se deixar contaminar entre as linguagens da dança e do teatro.

O jornalista viajou a convite da organização do Solus – Encontro de Solos Verbais e Não Verbais, de Ipatinga (MG)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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