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Crítica

Um Shakespeare entre Silvana Stein e Beckett

22.8.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Pedro Bastos/Solus

A arte do teatro pensada com a cabeça no cinema é um axioma possível para adentrar o universo de Discurso do coração infartado. A parceria da atriz Silvana Stein com o diretor Ricardo Alves Jr. pipoca textos visuais, sonoros e corporais numa dramaturgia porosa esculpida em cena limpa, de poucos objetos e preponderância do vazio. A paisagem em preto e branco condiz com a alma cinzenta da figura do velho comediante enclausurado entre quatro paredes e ainda assim atravessado pelo mundo de fora que lhe captura os gestos, a fisionomia, a memória, o devaneio.

O enquadramento da condição metafísica do ser já faria da química atriz escolada/encenador de primeira viagem uma distinta experiência vinda de Belo Horizonte, dada a sofisticação do trabalho. No entanto, a escolha da tragédia de Hamlet como pretexto abre flancos para a percepção bipartida dessa experiência: por um lado, a citação direta e difusa a Shakespeare e, por outro, a consistência na autonomia expressionista da atuação combinada a desenhos sonoros, espaciais e de luz que catalisam o poder narrativo independente da bênção do poeta inglês.

Silvana Stein coescreve e codirige com Alves Jr.

Horácio é o nome do ator em referência ao escudeiro do príncipe dinamarquês. Sua principal companhia é o cão Hamlet, invisível. Num diálogo ao telefone, William é quem está do outro lado da linha, seu filho. Elementar as citações em metalinguagem, ruídos para o que é essencial na situação do talentoso comediante solitário às voltas com a enésima constatação de sua incapacidade para desempenhar papeis dramáticos.

Sim, Hamlet é sua utopia de ofício. Ele sabe de cor as falas e rubricas.  Mas a dramaturgia colaborativa de Stein e Alves Jr. fixa-se na aura shakespeariana com mais obsessão que o próprio misto de ator, personagem e figura.

Os criadores são tão inventivos que mesmo a sobrevalorizada camada hamletiana não os impedem de cravar outros pontos de sustentação estética em que a obra se resolve mais como enigma do que como saídas literais, o apêndice do clássico. O porto seguro desse jogo é a atuação e a ambiência sonora.

Silvana Stein gera estranhamento desde que pisa ao fundo, delineando a composição física, os joelhos sempre arqueados, o rosto multifacetado felliniano. A solidão na velhice é extensiva ao estado do embrião no líquido amniótico. Pulsam nele a realidade interior e a imagética exterior, como pouca margem para a gênese do sujeito. Bastam um homem e seu ocaso para que a narrativa avance. E se o ator cômico sonha em representar um drama como ele é, falhará de novo, falhará melhor. O que não impede o espectador de enxergar os fios de marionete que o atam à tragédia pessoal como destino.

É na esfera abstracionista que o solo encontra sua vitalidade. Campo em que a linguagem expressiva, particular e subjetiva de Stein abre o leque para revelar a máscara do palhaço triste, seu dilaceramento ante o caos universal ao redor. Não é por meio do atalho da significação que o espetáculo nos incita, mas pela sua capacidade de deslizar na superfície, ou seja, na forma que grita por si, quer no modo silencioso quer na língua inventada.

Um formalismo que a encenação de Alves Jr. e Stein não esteriliza, antes poetiza. Ele, como cineasta apaixonado e espectador contumaz das artes cênicas, e ela, talhada no teatro de pesquisa europeu e brasileiro, sabem equilibrar as palhetas. É uma proeza que não incorram em projeções de imagens, abrindo outras janelas para corpo, palavra, som, luz e espaço cênico, este que o próprio Alves Jr. assina para comunicar a sensação de labirinto no vácuo e não ilustrá-lo – procedimento que não norteia a dramaturgia a quatro mãos, ilustrativa nas entradas shakespearianas.

Formação da atriz inclui Odin Teatret, Ói Nóis e Lume

A arquitetura sonora de Felipe Zenícola intervém radicalmente na narrativa, descolando o teto das certezas visíveis (corrobora o desenho de luz de Leonardo Pavanello) e fomentando o imaginário do público quanto à vizinha do andar de cima, cujos passos sugerem a geografia da casa e de quem nela também sobrevive: o quarto, o banheiro, a cozinha, a sala, enfim, a alma da mulher para quem Horacio é todo ouvidos, interagindo no escuro e sem lhe dirigir os olhos.

Discurso… é preciso e precioso no arco de legendas que propõe aos sentidos. Escutamos o que não vemos. Ouvimos o que não entendemos. Gestos e intenções por vezes assimétricos. São essas alteridades que nos conectam. Ao cabo, trata-se de uma aproximação coronária à obra de Samuel Beckett – o lenço que o velho coloca sobre o rosto na hora de dormir, sentado na cadeira, parece um gesto emprestado do opressivo Hamm em seus sonhos incompletos em Fim de partida.

Portanto, emanando total autonomia para prescindir dos poderosos ímãs alegóricos de Hamlet na dramaturgia. Afinal, nem o “empoderamento” orgânico e meticuloso de Stein, ao dublar o Fantasma do Pai, consegue dissuadir a atenção sobre a voz espectral de Laurence Olivier na sua adaptação cinematográfica que escutamos da televisão da moça. Um desvio monolítico e tanto.

O jornalista viajou a convite da organização do Solus – Encontro de Solos Verbais e Não Verbais, de Ipatinga (MG)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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