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Reportagem

O reencontro de Galpão e Gabriel Villela

23.9.2013  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guto Muniz

Depois da tempestade, parecia ser o prenúncio da paz. Os últimos dois anos não foram fáceis para o Grupo Galpão. Às portas dos 30 anos de carreira, seus atores resolveram se lançar à ficção realista de Anton Chekhov. Foram atrás de um especialista russo no escritor para dirigi-los. Buscaram e testaram linguagens com as quais tinham pouca familiaridade. “É uma inquietação sem fim”, comenta o ator Eduardo Moreira. “Estamos sempre atrás de desafios e riscos.”

Nesse contexto, Os gigantes da montanha – espetáculo que passou por São Paulo dentro da Mostra Sesc de Teatro de Rua – tinha todos os predicados para conduzir a afamada companhia mineira, enfim, a uma zona de segurança. Primeiro, a nova peça sinalizava o reencontro entre o Galpão e o diretor Gabriel Villela. Juntos, eles produziram dois grandes sucessos: Rua da amargura (1994) e Romeu e Julieta (1992), essa última, ainda hoje aclamada pelo mundo e vista no ano passado no Globe Theatre, o mítico teatro de William Shakespeare, em Londres.

Além da presença de Villela, também já estava apontado, desde o início do projeto, o retorno ao teatro de rua e às formas populares – zonas onde, certamente, seus atores trafegam com mais desenvoltura.

Mas não é sempre que as expectativas se cumprem. Nem o encenador nem a volta às praças públicas foram capazes de se sobrepor ao desassossego que eles encontraram no texto de Luigi Pirandello. “O Galpão é um grupo muito centrado, muito racional. Essa obra, então, veio como um chacoalhão. Eu queria que o reencontro fosse uma experiência nova. E realmente foi”, comenta Gabriel Villela. “Mexemos na anatomia do grupo.”

Peça é adaptação do último texto do autor

Ao contrário do que se poderia supor, a autoria clássica não torna Os gigantes de montanha uma escolha livre de incertezas. Trata-se do último texto escrito por Pirandello. Deixado por ele inacabado, com um final que oferece complexas possibilidades aos encenadores. Também não está em jogo aqui uma dramaturgia de natureza linear. Mas um universo que tende para a fantasia, que se aproxima do surrealismo e do absurdo.

Cores e canções para montar texto de Pirandello

Pirandello é geralmente visto sob uma ótica sisuda. É tudo muito rancoroso e sombrio”, define Gabriel Villela, referindo-se à prevenção que grande parte dos estudiosos tem ao escritor italiano, resultado do seu controverso apoio ao fascismo nos anos 1930. “O que fizemos foi tirar essa película escura que o cobre para mostrar ao público as suas cores.”

Não poderia haver alguém mais inteirado sobre colorido e exuberância do que o diretor mineiro. Muitas vezes tachado de barroco, ele possui declarado apreço pela beleza. E não se furta em trazê-la para essa peça. “O mundo está muito feio. E não está fácil se bancar o belo do início ao fim. Às vezes, mesmo para se mostrar o mais feio, é precisar passar pelo que é bonito.”

Ainda que de maneira oblíqua, as declarações do encenador encontram ressonância no texto escrito em 1936. Nessa fábula, o autor refletia claramente sobre a função da arte, o espaço que ainda pode existir para a literatura e o teatro em um mundo regido por outras lógicas, mais pragmáticas. “Ele está colocando questões muito pungentes, filosóficas, que falam da imaginação como única saída para os artistas”, acredita o ator Eduardo Moreira.

Nenhuma criação foi tão trabalhada por Pirandello como esse texto. Sua escrita consumiu anos e, mesmo no leito de morte, o dramaturgo ainda se preocupou em ditar ao filho as indicações para o que seria um terceiro ato. Sonho, loucura, delírio – são alguns dos componentes em jogo. Conta-se a saga de um grupo de atores decadentes que chega a uma vila isolada. É lá, nesse ambiente regido por um mago e povoado por fantasmas, que eles devem apresentar uma peça. Mas os únicos espectadores disponíveis são os temidos gigantes da montanha. “Nós nem sabemos se eles estão vivos ou mortos. Quem são esses tais gigantes? Trata-se de puro realismo fantástico. Poderia muito bem se passar em Macondo”, diz Villela, fazendo menção à cidade que o colombiano Gabriel García Márquez descreve no romance Cem anos de solidão.

A peça, que estreou em Belo Horizonte em maio desse ano e já passou por 20 cidades, chegou a reunir mais de 10 mil pessoas em uma única apresentação. Para dar forma à ficção complexa de Pirandello e torná-la inteligível para plateias tão grandes, o grupo e o diretor lançaram mão de suas habilidades em lidar com opostos: misturam o clássico e o popular, trazem uma dramaturgia universal, mas mesclada a aspectos da cultura brasileira, usam canções europeias e bonecos do Nordeste. “São polos extremos, aparentemente inconciliáveis, que a gente consegue unir”, comenta Moreira.

Parte essencial da montagem é a música – “é um traço característico do Galpão, contar histórias por meio de canções”, observa o diretor, que teve a colaboração da pesquisadora italiana Francesca Della Monica, especializada em antropologia da voz e familiarizada com os temas de Pirandello.

Na peça, as composições musicais não se relacionam diretamente com o que é visto no palco. São canções do repertório italiano bastante conhecidas, como Ciao amore e Bella ciao. “Obras tão corriqueiras, que entram tão fora de contexto que acabam fazendo sentido”, acredita o ator.

>> Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, em 20/09/2013

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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