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Crítica

Palavra e ator ancoram pensamento lacaniano

7.9.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Milos Deretich

Buenos Aires é a cidade com a maior concentração de psicólogos e psicanalistas no mundo: um profissional para cada 120 habitantes. Uma região ao redor da Plaza Güemes, no bairro Palermo, é conhecida como “Villa Freud”, devido à grande concentração de consultórios por lá. Há livros entre os mais vendidos, revistas especializadas em bancas de jornal e programas de televisão totalmente voltados ao tema. E não é raro encontrar nas ruas gente usando termos como “histeria”, “paranoia” e “complexo de Édipo”. E, sim, há sempre alguma peça em cartaz tratando de neuroses e obsessões.

Mas como levar a psicanálise para os palcos sem vulgarizar seus conceitos? O dramaturgo e diretor Pablo Zunino encarou esse desafio El doctor Lacan, em cartaz no Teatro La Comedia. A peça transcorre em um momento chave na trajetória do psicanalista francês Jacques Lacan (interpretado por Mario Mahler). Em meio às manifestações estudantis e operárias de maio de 1968, ele e sua secretária Glória (Silvia Armoza) se deparam com um auditório vazio. O público dos famosos seminários que Lacan ministrava desde 1953 estava nas ruas. No impasse entre partir ou esperar para ver se alguém chega, Lacan e Glória conversam sobre os momentos marcantes da vida do psicanalista, sua relação com o pensamento freudiano, a expulsão da Associação Psicanalítica Internacional, a movimentação popular e a capacidade dos sujeitos manejarem a angústia em tempos tão conturbados.

Lacan foi uma personalidade excêntrica: gostava de charutos, gravatas-borboleta e roupas extravagantes. Transpor essas características para a personagem não foi tarefa difícil. Mahler o interpreta como um gênio louco, em contraste com a normalidade sórdida de Glória. É ela quem, na trama, explica ao público conceitos complexos da psicanálise lacaniana como o “Grande Outro”, o “sujeito barrado” e o “objeto a”. Explicações que são praticamente desnecessárias, pois o público é de iniciados. Em uma brincadeira com a plateia no início da sessão, Lacan/Mahler pede para que se identifique quem está ou já passou por um tratamento psicanalítico. Quase todos levantam a mão.

A chave cômica do espetáculo não oculta a relevância dos temas abordados. Em um mundo cada vez mais desnorteado e repleto de satisfações instantâneas, o que tem a oferecer um tratamento demorado que exige a responsabilidade dos pacientes? Como dar conta das angústias valendo-se somente de palavras, sem remédios e as satisfações provisórias do consumismo? Nas barricadas de Paris, as palavras de ordem falavam da imaginação no poder e que era proibido proibir. Lacan via nesses slogans um angustiante hedonismo que de maneira alguma seria libertador.

Mahler protagoniza peça sobre psicanalista francês

O cenário é exíguo, assim como a iluminação e a sonoplastia. Faltam esses recursos para tornar El doctor Lacan um espetáculo maior. Concentrado apenas no trabalho dos atores, a obra não evidencia plenamente a riqueza do texto e a seriedade da pesquisa feita por Pablo Zunino. Glória/Armoza carrega uma pesada mala de onde retira os objetos de cena. Assemelha-se assim a uma atriz mambembe obrigada a se adaptar a qualquer espaço cênico, o que, neste caso, é desnecessário. Por outro lado, essa precariedade destaca a carismática atuação de Mahler, que estabelece uma relação cúmplice com os espectadores. Lacan teria aplaudido.

Ficha técnica

Texto e direção: Pablo Zunino

Com: Silvia Armoza, Mario Mahler

Figurinos: Francisco Ayala

Iluminação: Juan Manuel Banegas

Penteados: Miguel Granado

Sonoplastia: Federico Lucini

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Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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