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Reportagem

Romeo Castellucci expõe contrafaces da fé

19.9.2013  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Klaus Lefebvre

Certa vez, folheando um livro de arte, o diretor de teatro italiano Romeo Castellucci deparou com um rosto com o qual havia travado contato quando era estudante de artes visuais em Bolonha. Era uma imagem de Jesus pintada pelo renascentista Antonello da Messina provavelmente em 1465. Sentiu como se o retrato olhasse para ele.

Essa experiência fundadora levou à criação da peça Sobre o conceito da face no filho de Deus, da Socìetas Raffaello Sanzio, inovadora companhia italiana da qual Castellucci foi um dos fundadores e grande atração do 20º Porto Alegre Em Cena. As sessões serão desta quinta-feira (19/9) a sábado (21/9), às 21h, no Theatro São Pedro.

O cenário conta com uma grande reprodução da obra renascentista. No auge do espetáculo, um grupo de 10 crianças entre oito e 12 anos, recrutadas em Porto Alegre, arremessa granadas de alumínio contra ela.

A peça foi alvo de protestos religiosos. Um grupo interrompeu uma apresentação em Paris, em 2011, com cartazes pedindo o fim da cristianofobia. Os manifestantes tiveram que ser retirados pela polícia para que a sessão pudesse recomeçar. Qual o motivo de tanta polêmica?

“Você tem que perguntar para eles”, responde o ator Sergio Scarlatella, em entrevista a Zero Hora, ao lado do veterano Gianni Plazzi, com quem contracena.

Ambos negam, em uníssono, que haja conteúdo antirreligioso. Na peça, Scarlatella interpreta um filho que cuida do pai idoso (Plazzi) que sofre de incontinência. Este aparece em cena vestindo apenas uma fralda geriátrica por onde escorrem fezes. E a companhia não poupa o público dessa imagem.

“Procurar uma relação direta entre os personagens e o retrato de Jesus que está no cenário não é um bom caminho para interpretar a peça”, avisa Plazzi.

Sim, este é um daqueles espetáculos que você tem que completar com a imaginação. Não há exatamente uma história, mas uma sequência de cenas. Funciona em dois planos: um deles mostra a relação entre o pai e o filho; outro remete a um registro onírico, no qual se passam diversos eventos sem conexão aparente. Uma frase de Castellucci no material de divulgação dá uma pista: “Quero encontrar Jesus em Sua mais extrema ausência”.

Uma das imagens da obra vista só em Porto Alegre

Com uma trajetória de 32 anos, a Raffaello Sanzio é uma das mais destacadas companhias do teatro pós-dramático — embora os atores não se identifiquem com esta expressão. Trata-se, em resumo, de um teatro que foge da dramaturgia tradicional, buscando novas formas de expressão cênica.

Sobre o Conceito da Face… é a terceira participação do grupo no festival. Em 1999, eles mostraram Orestea (Una commedia organica?), versão da tragédia de Ésquilo interpretada por um elenco que contava com mulheres muito gordas, homens muito magros e pessoas com deficiência. Havia também animais em cena. Em 2006, a companhia narrou a história do Pequeno Polegar com o público confortavelmente deitado em camas. Os espectadores de Buchettino eram recebidos com cheiro de mato e de chá.

>> Texto originalmente publicado no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, em 18/9/2013.

Entrevista

‘A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça’, diz Romeo Castellucci

Uma das mais inovadoras companhias de teatro da Europa, a Socìetas Raffaello Sanzio participa pela terceira vez do Porto Alegre Em Cena. O grupo apresenta o espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus, que estreou na quinta-feira e ainda terá sessões nesta sexta e no sábado, às 21h, no Theatro São Pedro.

O diretor da companhia, Romeo Castellucci, que não viajou a Porto Alegre, concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora, por e-mail, da Itália.

Zero Hora — Qual é a relação entre a grande imagem de Jesus que aparece no cenário e os personagens da peça?
Romeo Castellucci —
Pensei em fazer a peça quando estava sentado em uma poltrona de couro sintético, em um domingo à tarde. Estava sozinho na sala e lá fora havia um pouco de sol. Segurava nas mãos um livro de história da arte, e meu olhar deparou com esta magnífica cabeça, um retrato do Salvator Mundi. Percebi que o homem retratado por Antonello da Messina (pintor renascentistas italiano) estava olhando para mim no sentido de que não era eu quem o estava olhando, era ele quem me olhava e me desnudava. Imediatamente, pensei em reproduzir o retrato em tecido, em uma escala gigantesca. Deveria ter o mesmo tamanho de um outdoor, algo que não se pudesse evitar de olhar. Esse rosto, essa pintura, representa a face de um homem. Jesus certamente era um homem. Isso me interessa e me toca. Não importa se é verdadeiro ou falso. Mas a característica dessa pintura consiste no seu olhar e na ambiguidade de sua expressão. Olha para mim, precisamente a mim, e é capaz de me deixar completamente nu, para arrastar-me no chão ao lado dele. Jesus, até onde sei, poderia ter o meu rosto, o seu rosto, o do meu vizinho, o do meu inimigo, mas certamente a minha cara como eu me vejo todas as manhãs, depois de levantar a cabeça molhada da pia. Os sinais que mostro, a ação que se desenrola aos seus pés, apesar das aparências, não são “negativas”. Trata-se de mostrar a condição humana, em um De Profundis. Esses homens sofredores são criaturas daquele Deus. Este é um espetáculo sobre o amor e sobre a beleza, mas também sobre o colapso da esperança e da dignidade humana. As fezes são apenas uma metáfora do real. Não há nenhum julgamento sobre o mundo, nenhum julgamento sobre as escolhas dos homens, nem mesmo de Deus. Deixo passar as imagens. Imagens que pertencem à história de cada um de nós. As imagens estão à espera de ser interpretadas em um sistema de sinais, sempre diferentes, assim como são diferentes, uns dos outros, os espectadores. Fim da história.

ZH — Em 2011, uma apresentação da peça foi interrompida em Paris por manifestantes cristãos. Em outra sessão, arremessaram ovos no público. O que chocou estas pessoas?
Castellucci —
Durante o espetáculo, jamais foram verificados incidentes, se excluirmos a estreia em Paris, quando um grupo de jovens da Action Française subiu ao palco para mostrar um cartaz. Mas isso aconteceu antes mesmo da ação começar. Nunca houve arremesso de objetos. Todas as pessoas que assistiram ao espetáculo, em todo o mundo, amaram-no e respeitaram-no. Crentes e descrentes. A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça.

ZH — No material de divulgação, você escreve: “Quero encontrar Jesus em Sua mais extrema ausência”. O que quis dizer?
Castellucci —
Jesus desapareceu da tradição artística por centenas de anos. Não é mais o sujeito e o modelo da pintura e da arte, como tinha sido até o barroco. Eu registro essa ausência e a transformo em um palco.

ZH — A Socìetas Raffaello Sanzio já havia apresentado, em Porto Alegre, os espetáculos Orestea (Una commedia organica?), em 1999, e Buchettino, em 2006. O que têm em comum com Sobre o conceito da face no filho de Deus?
Castellucci —
Têm em comum o fato de pertencerem à mesma cabeça. Mais do que isso eu não posso dizer porque me encontro na posição mais míope para poder julgar de fora o meu trabalho. De qualquer forma, trata-se de trabalhos nos quais o radicalismo é expresso de forma completamente diferente.

>> Publicado na edição on-line de Zero Hora em 20/9/2013.

Ficha técnica

Concepção e direção: Romeo Castellucci

Trilha sonora original: Scott Gibbons

Com: Gianni Plazzi e Sergio Scarlatella e participação de Dario Boldrini, Vito Matera e Silvano Voltolina

Assistência de direção: Giacomo Strada

Objetos: Istvan Zimmermann e Giovanna Amoroso

Operação de som: Matteo Braglia e Marco Canali

Iluminação: Fabio Berselli e Luciano Trebbi

Suporte: Vito Matera

Gestão: Gilda Biasini, Benedetta Briglia e Cosetta Nicolini

Administração: Michela Medri, Elisa Bruno e Simona Barducci

Consultoria de administração: Massimiliano Coli

Produção: Socìetas Raffaello Sanzio

Produção da turnê na América do Sul: Aldo Miguel Grompone d.i.

Gerente de turnê: Sandra Ghetti

 

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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