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Crítica

Espanca!, Cia. Brasileira, Armazém e um achado

2.10.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Guto Muniz

O 14ª Festival de Cenas Curtas, cuja principal etapa terminou na noite de domingo e desdobra-se até o próximo fim de semana, proporcionou a quatro grupos convidados criar obras de até 15 minutos dentro do espírito do teatro de pesquisa que pauta as respectivas trajetórias, bem como os 15 anos do encontro organizado pelo centro cultural Galpão Cine Horto. São eles o Armazém Companhia de Teatro, 26 anos, do Rio; o grupo Clowns de Shakespeare, 20 anos, de Natal; a Companhia Brasileira de Teatro, 14 anos, de Curitiba; e o Grupo Espanca!, 9 anos, de Belo Horizonte, a cidade-sede do encontro.

Sobre O homem que chovia, do núcleo potiguar, já escrevemos aqui. Comentamos a seguir os trabalhos dos demais grupos acima reprisados na última noite do encontro, além das outras criações apresentadas na véspera.

O festival é competitivo. Proporciona a quatro cenas inscritas e mais votadas pelo público, além de uma quinta consolidada por comissão, uma temporada de fim de semana na sala do antigo edifício do Horto onde funcionava um cinema de bairro, na zona leste belo-horizontina. Confira as cenas vencedoras aqui e a programação para vê-las ou revê-las de 4 a 6 de outubro, aqui.

Foi inspirador conhecer o trabalho do Pigmalião Escultura que Mexe, 6 anos, núcleo local de teatro de animação que mostrou a impactante cena O quadro de uma família, simbiose de manipuladores e bonecos em proporções humanas. Uma criação com graus de sofisticação visual, sonora e narrativa que lembram o saudoso grupo argentino El Periférico de Objetos.

Patrícia Selonk e Ricardo Martins na cena do Armazém

O jaleco ou a vida

O Armazém mostrou Estudo nº 01, com direção de Paulo de Moraes e dramaturgia não informada. No ambiente de um plantão hospitalar, possivelmente uma ala psiquiátrica, divisamos três planos. À esquerda, dois médicos tomam anfetaminas e outras drogas intravenosas. Um deles regozija-se de ser promovido à chefia do estabelecimento enquanto o outro lhe trama um ardil. À direita, dois enfermeiros avistam os cirurgiões viciados, mas evitam confrontar a quem são subordinados. No centro desses nichos, em praticável pouco acima dos demais, uma paciente aparece sobre uma cama. Sua fala oscila confusão mental e lampejos poéticos, uma espécie de delírio consciente. Inclusive quanto aos malefícios do doutor que a trata, o sujeito capcioso do outro espaço narrativo. Ao final, tais planos se contaminam. A disputa de forças na arena da saúde vai até as últimas consequências, recai sobre o tratamento dos doentes e tem sequelas correspondentes em outros campos da sociedade. A cena é dominantemente estática. Cada ator ocupa um estrado-ilha sob foco de luz. Isso mostra uma rara opção do grupo em não enfatizar o “texto” físico característico de seus espetáculos. Idem para a composição visual, dessa vez austera. Ou seja, o poder das imagens viria da voz, da palavra, da presença de ator. Como médicos, Patrícia Selonk e Ricardo Martins comunicam o conflito subterrâneo das suas microações e diálogos breves. No caso de Marcos Martins e Jopa Moraes, os enfermeiros, e de Lisa E. Fávero, a paciente, o potencial expressivo é consideravelmente reduzido. Eles, pela falta de tônus na fala, no gesto. Ela, pela pouca densidade no estado de devaneio. Nesse experimento, o Armazém enxuga os elementos de cena e as atuações ficam mais expostas aos contrastes. Enxugamento que ainda não passa pela música, narradora onisciente de ponta a ponta. PS: Vale anotar a participação de Jopa como ator, dividindo a cena com a mãe, Selonk, e dirigido pelo pai, Moraes – primogênito que já colaborava em processos criativos recentes da companhia.

Cena do Grupo Espanca! dirigida por Marcelo Castro

A tortura como sistema

Ao estampar um personagem da realidade brasileira no título da cena Onde está Amarildo?, o Espanca! assume a impregnação política em tons mais fortes. Tônica que não vem pelas manchetes do dia, como insinua, mas pela arquitetura da linguagem. Nada de referências diretas, portam-se os artistas que desde a primeira obra, Por elise (2004), embrionária deste festival e sua certidão de nascimento, faz da criação de turno um laboratório à parte nas formas e conteúdos a explorar. O mote é algo kafkiana. Um homem bate à porta de uma repartição de segurança trazendo à mão um envelope que recebera e para lá ruma como se intimado. Acaba torturado e acusado pelo assassinato do amigo com quem se encontrara na noite anterior. Este roteiro mínimo, a cenografia concentrada em arquivos de aço e os figurinos cotidianos da vítima de espancamento, na atuação de Gustavo Bones, implicam tintas realistas. Estas são infiltradas pela alegoria circense na figura de um palhaço policial e truculento, por Denise Leal, e de um músico de fanfarra que repica uma caixa em inserções esporádicas, por Alexandre de Sena. Soma-se ainda o tom farsesco do delegado, por Assis Benevenuto Vidigal, e o cerne do absurdo na presença do preso animalizado por uma corda no pescoço, corpo nu empoeirado, na performance de Marcelo Castro. Esse balaio de registros é organizado com perspicácia por Castro, que também dirige. É clara a corda bamba entre o ilusionismo do espocar (feito tiro) do tubo de papel laminado que “chove” sobre a plateia e a chicotada oculta no lombo do homem preso. Há uma gravidade espreitada no jogo operado pelos atuadores. Paira uma tensão no ar no reino do pastelão. Amarildo vem à baila em frestas sobre cultura da violência nas delegacias do Brasil, dos regimes ditatoriais sul-americanos. E na escancaração das imagens projetadas ao final, com a humilhação que soldados norte-americanos aplicaram aos presos políticos da base naval dos EUA em Guantánamo, território cubano. Nessa fabulação do horror, a cena deixa um travo amargo. PS: Horas antes do post, a imprensa noticiou que dez policiais do Rio de Janeiro foram denunciados pelo desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, entre eles um major. A denúncia após dois meses e meio de investigação se dá por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver. PS2: Onde está Amarildo? tem um forte conteúdo simbólico de transição para o Espanca!. Trata-se da primeira criação sem a parceria com a atriz, autora, diretora e cofundadora Grace Passô, que mantém participação nas peças do repertório mas trilha outros caminhos. Bones e Castro falaram dos novos rumos do grupo em entrevista ao site Horizonte da Cena, aqui. Ambos permanecem aliados à produtora Aline Vila Real. Na sessão de domingo, Samira Ávila e Paulo Azevedo, da formação original, estavam na plateia. A vida é ciclo.

Vivan em ‘Tempos de Marilyn’, direção de Jardim

A intimidade do mito

O mito Marilyn Monroe é revisitado em suas faces e contrafaces numa cena que procura acentuar os recursos do metateatro em aspectos biográficos pincelados sobre a atriz que foi casada com o dramaturgo Arthur Miller. São três vozes a individualizá-la. Atrizes que ocupam um quadrado delimitado no espaço cênico, a sugerir uma casa. Apesar das marcações visíveis, os deslocamentos extrapolam a casa imaginária, sugestivamente, na tentativa de envolver o espectador no mesmo ambiente doméstico, algo confessional. Isso resultaria mais frutífero numa relação de arena, ao contrário da frontalidade do Galpão Cine Horto. O lugar da intimidade é também aquele em que a figura encontra-se mais consigo mesma. Ela sussurra inseguranças e solidões bastante conhecidas da historiografia do cinema. O que as atuantes Bia Borin, Debora Vivan e Priscila Oliveira pretendem e o diretor José Roberto Jardim, também, é prospectar particularidades da pessoa e não da personalidade. A superposição dessas falas breves, que tampouco encadeiam uma sequência, são como cores diluídas na água. Ainda não transmutam uma tonalidade autônoma. Tempos de Marilyn dá pistas de que o material rende e pode efetivar uma poética caleidoscópica das afeições, idiossincrasias e codependências dessa mulher que pode dizer muito à contemporaneidade. Jardim já demonstrou tato para isso em Aberdeen, biografia a respeito de outro ícone pop, Kurt Cobain – do mesmo dramaturgo que supervisiona esta semana, Sérgio Roveri.

Naira e Bolzan da Cia. Brasileira, sob direção de Abreu

No amor e no civil

Um discurso veemente pelos direitos à união homoafetiva e à adoção por casais do mesmo sexo catalisa a cena da Companhia Brasileira de Teatro. No título, o sobrenome da atual ministra da Justiça do governo socialista francês, Christiane Taubira, circunscreve a saudação à voz que dobrou setores da extrema direita daquela sociedade ao ver promulgada a lei que garante “o casamento para todos”. A dramaturgia de Giovana Soar e Marcio Abreu, também ele diretor, interfere minimamente na fala lúcida e franca dessa mulher negra nascida na Guiana e, portanto, ciente da luta pelo respeito ao outro a partir da condição de seu povo colonizado. Sua oratória, desde a tribuna do parlamento, não vem impregnada do protocolo verborrágico. É uma palavra coronária. Um pensamento humanista que não reivindica tirar, antes, somar dignidade. A transposição desse documento para as artes cênicas, e vindo do país que fez uma revolução disseminadora de igualdade, liberdade e fraternidade lá no século 18, sincroniza com o momento brasileiro em que boa parte da sociedade está ávida para pôr a boca no trombone. O espectador escuta a exposição oral gravada, bipartida pelas vozes dos atuantes que depois vão encarná-las no ato vivo. Enquanto isso, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan ocupam o espaço com seus corpos em princípio estranhados, depois desejantes. Na medida em que o discurso suscita o sentimento de adesão, essas figuras também evoluem a confiança e a entrega. O beijo surge então como ação contínua e reveladora da expressão amorosa entre duas pessoas. Ele não vem apenas da boca, da língua, mas da beleza do que se ouve e do que se agrega politicamente na aceitação do outro. É quando Naira e Bolzan avançam mansamente sobre os espectadores e estendem a eles, não importa o gênero, o beijo em seu sentido erótico e fraterno. Acabam devidamente acolhidos porque souberam traçar esse percurso solidário transitando desde o início da noite por vários cantos do Galpão Cine Horto, inclusive as arquibancadas, deixando-se ver como um efetivamente igual entre os homens e mulheres ali reunidos pela inerência da arte e da cidadania. Taubira faz essa mediação civil e amorosa com pertinência cênica que amplia as possibilidades de articular interação e agitação – dispositivos que as manifestações artísticas acionaram em várias fases da história. O teatro como assembleia.

Arethuza Iemini cutuca falsa moral em ‘Sheila’

Aula magna

A situação é teatralmente auspiciosa: uma prostitua discorre sobre o ofício a pais e professores de um estabelecimento de ensino. A inversão do lugar dos saberes é a prova dos nove de Sheila, o solo Arethuza Iemini. A cena escrita e dirigida por Wester de Castro lança um olhar original sobre tema tão banalizado e distorcido em abordagens recentes na literatura, no cinema e na televisão. É como se a personagem de Neusa Sueli em Navalha na carne surgisse com mais autonomia de pensamento e de ação, projetada do muquifo pliniano dos anos 1960 para o espaço público dos dias que correm. A condição de margem permanece, mas a capacidade de trançar a consciência da escola da vida atinge outras dimensões. Não se está falando da pedagogia do sexo, em si, mas da condição dessa trabalhadora e cidadã amante da literatura e da música, que sabe morar na filosofia da alcova e tem compreensão de seus passos. Texto e atriz estão umbilicados em ideias e atitudes. A performance de Iemini é elegante e sincera. Não precisa apelar ao nu ou ao decote pronunciado pela enésima vez quando se está diante do relato de uma garota de programa. Tudo bem que ela se dirige aos pais e mestres, mulheres e homens que formam diretamente as crianças e os adolescentes, incutindo-lhes a moral e os bons costumes. Mas a dramaturgia se espraia por outros tempos e espaços que facilitariam essa exploração, como a esquina mal iluminada e demais cantos da cidade sugerida por placas distribuídas no cenário – orientações e desvios também sexuais. Uma das virtudes da atriz é o seu poder de locução, de pintar o que diz com a música interior que cada instante pede. Ela é lasciva, prudente, perspicaz, solitária, sensual, poeta ou intelectual sem se exibir para tanto, dispensando “máscaras” demarcatórias do estado de alma. Há consonância com os modos discretos como o corpo se expressa – outra inversão de expectativa ao se visitar o universo em xeque. Sheila troca a ostentação pela assertividade. O que se traduz na parcimônia dos recursos usados em cena. A criação surpreende pelas subversões que concentra nesta “aula magna” sobre a liberdade de ser o que se é e não julgar.

Cavalcanti e Juliana Krause em ‘Cabíria corta o cabelo’

Dores de amores

Cabíria corta o cabelo abre com a perspectiva cinematográfica que visita. O blecaute cede aos poucos para a luz que desenha o canto esquerdo do espaço cênico em que começamos a avistar a desoladora imagem da personagem-título sob o som dolente de uma escaleta. Até irromper um chamado ao fundo da arquibancada, quando uma travesti caminha aos poucos até a sua amiga. O movimento como que faz um close naquele canto e a cena ali permanecerá na jornada de amizade e superação. O modo como a criação reinventa a prostituta de Fellini ao aproximá-la de alguém com quem tem afinidades – a prostituição, os abandonos afetivos, a capacidade de sacudir a poeira e dar a volta por cima – promove uma atualização quanto a questões de gênero e de identidade. Por trás dessa ambientação realista e diálogos aparentemente comezinhos projeta-se a lida com preconceitos e desprezos. A Cabíria é consolada por mais uma desilusão amorosa e se vê estimulada também a entrar na dor do outro. A leitura sociológica vem das entrelinhas. São consistentes os lastros neorrealistas na atuação e na atmosfera. Esta não foi cortada sequer com a queda de um refletor do lado direito e escuro do espaço, o ruído do acaso [no debate do dia seguinte, soubemos que não foi um refletor que caiu, mas um televisor semidestruído que a encenação usou e sobre o qual recairia um foco de luz, só que o mesmo veio ao chão antes do momento previsto, permanecendo escondido]. O que as performances de Francisco Thiago Cavalcanti e Juliana Krause nos dão são a subjetividade concreta desses seres, a maneira como conseguem apegar-se ao menor fiapo de esperança que os faça ir adiante. Como a travesti contemplada no enredo na mesma medida das dores de Cabíria, Cavalcanti encontra o ponto de acalento em meio à essência naturalmente extrovertida de sua figura, sobretudo nos momentos de silêncio.

Cena impactante da Pigmalião Escultura que Mexe

Seres animalizados

O embrutecimento das relações interpessoais aparece de forma aguda em O quadro de uma família. A obra da Pigmalião Escultura que Mexe faz o procedimento do teatro de animação atingir níveis do sensorial e do real que mobilizam com a mesma intensidade diante de uma tragédia factual. Sua plasticidade é esmerada e problematizada à altura do conteúdo sintomático com os tempos de familicídio. A ousadia formal dispõe formalismos pouco usuais que o espectador decodifica com encantamento e assombro. Esculturas, máscaras e bonecos fundem-se nas figuras do pai, da mãe e das duas crianças. Estas são eminentemente bonecos, enquanto o casal tem como “suporte” atores. Todos com a cabeça caracterizada como um porco e metidos em roupas sociais e higiênicas. Essa poderosa carga surrealista pauta a narrativa visual numa movimentação gradual, inclusive dos manipuladores em sua vestimenta neutra. Ao público, é desvendado, a olho nu, que tudo é teatro e, ainda assim, somos transportados pelos arquétipos do patriarca, da subserviência materna, da insubordinação dos filhos bem nascidos e mal criados. Outro aspecto precioso nessa experiência absolutamente orgânica em seu artifício é a ambientação sonora. A dramaturgia do som permite imaginar o choro do bebê ou a brusquidão do pai. Uma sonoridade exasperante que completa o caráter sinestésico da cena, dona de fôlego de um espetáculo, tão completa e bela que é. Para não nos esquecermos da luz imprescindível e fazer uma analogia com a moldura fotográfica da qual esse núcleo família disfuncional é extraído, a obra plasma feito um obturador que controla a duração da exposição da chapa. Eis a sensação diante do descontrole a que somos submetidos por meio desses seres animalizados. O grupo Pigmalião, pelos diretores Igor Godinho e Eduardo Felix, também dramaturgo, e demais integrantes da equipe, elaboram um caos com admirável contundência artística e propriedade política sobre sua época.

Textos sobre as demais noites

O Teatrojornal reveza a escrita das criações do Festival de Cenas Curtas com os sites Questão de Crítica, por Daniele Avila Small, do Rio de Janeiro; Satisfeita, Yolanda?, por Pollyanna Diniz, do Recife; e Horizonte da Cena, por Soraya Belusi, de Belo Horizonte – esta jornalista coordena a atividade e os debates do dia seguinte em parceria com Luciana Romagnolli.

Confira a leitura de Soraya também sobre as obras da segunda noite, quinta-feira.

Leia ainda os textos de Daniele e de Pollyanna sobre as cenas da primeira noite, quarta-feira.

Veja a cobertura do encontro pelo fotógrafo Guto Muniz.

>> O jornalista viajou a convite da organização do 14º Festival de Cenas Curtas.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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