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Crítica

O tempo de Medeia é hoje

5.10.2013  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Pedro Isaias

Em Medeia vozes, que segue em cartaz de quarta a domingo, na Terreira da Tribo, com ingressos esgotados, o Ói Nóis Aqui traveiz celebra uma estética política e uma política estética plasmadas em 35 anos. Para quem é da minha geração e acompanhou apenas os últimos 10 ou 12 anos, é estranho pensar no Ói Nóis como arauto da postura agressiva com a qual foi associado nos primeiros tempos. O grupo é, acima de tudo, signo de acolhimento, por mais que alguns momentos nesta peça nos provoquem sensação de insegurança.

Experimentamos a hospitalidade na maneira como os atuadores se relacionam com os espectadores, respeitando seu espaço, mas convidando-os a estar dentro da cena. Isso aparece no ritual de primavera, em que um grupo de atuadoras oferece pão e frutas secas, sempre olhando nos olhos. O teatro de vivência do Ói Nóis é uma obra de arte total em um sentido que Wagner jamais imaginaria.

Baseada no romance homônimo de 1996 da escritora alemã Christa Wolf, Medeia vozes é uma releitura revolucionária da tragédia de Eurípides. Nesta versão, a personagem – brilhantemente vivida por Tânia Farias – não comete assassinatos. A feiticeira movida pelo ciúme ou pela honra retratada pelo tragediógrafo grego dá lugar a uma ativista em busca de justiça social. Ao tentar desenterrar os esqueletos que fundam o reino de Corinto, é perseguida pelo poder instituído. Não é uma peça sobre como o poder patriarcal acabou com a vida de uma mulher. É sobre como esse poder acabou com uma ideia de civilização.

Mais uma vez, o Ói Nóis não está falando de um mito que ficou no passado. Medeia ecoa as mulheres que sofrem mutilações genitais na África, estrupros sistemáticos na Índia e violência doméstica no Brasil. Essa atualidade é sublinhada pela inserção de depoimentos contemporâneos em meio à trama, esta contada de forma não cronológica. A própria Medeia se desdobra em muitas: há a Medeia lírica da primeira cena, a Medeia irônica que questiona Jasão (Eugênio Barboza), a Medeia corajosa que desafia Acamante (Paulo Flores) e, por fim, a Medeia exilada. Essa dramaturgia sofisticada, que opera em uma estrutura que tem algo de onírico, pode dificultar o entendimento de quem não está familiarizado com a história.

Tânia Farias e parte dos atuadores numa das cenas

A estrutura cênica funciona de forma parecida com os espetáculos de teatro de vivência apresentados nos anos recentes. A complexa cenografia, que ocupa diversos ambientes da Terreira da Tribo, é impressionante, mas não tanto quanto os figurinos.

Já a performance é fresca, como se fosse a primeira vez, e intensa, como se fosse a última (isso lembra um manifesto divulgado por eles no início dos anos 1980 segundo o qual “é necessário atuar como se fosse a última vez que tivesse algo a comunicar aos demais”). Aqui está um espetáculo ao qual você não hesita em conceder cinco estrelas.

Ao final, como de costume, o grupo não retorna para receber os aplausos. A imagem de Medeia vagando pela Rua Santos Dumont, onde fica a Terreira, reverbera na mente dos espectadores como um alerta de que é preciso fazer algo. E rápido.

>> Texto originalmente publicado no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, em 18/9/2013.

>> Leia também a reportagem ‘Ói Nóis faz releitura moderna de tragédia’.

Ficha técnica

Criação coletiva: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, inspirada livremente no romance homônimo de Christa Wolf

Roteiro, encenação, cenografia, figurinos e iluminação: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

Atuadores: Tânia Farias, Paulo Flores, Clélio Cardoso, Marta Haas, Eugênio Barboza, Jorge Gil, Sandra Steil, Paula Carvalho, Roberto Corbo, Letícia Virtuoso, Mayura Matos, Luana da Rocha, Keter Atácia, Alex Pantera, Geison Burgedurf, Pascal Berten e Pedro Gabriel

Música original: Johann Alex de Souza

Preparação vocal: Leonor Melo

Operação de luz e de som: Daniel Steil e Márcio Leandro

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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