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Reportagem

Nathalia Timberg vai a Beckett com o Club Noir

29.1.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Daniel Seabra

Quando o telefone tocou, Nathalia Timberg precisou de algum tempo para responder. Do outro lado da linha, o diretor Roberto Alvim, da cia. Club Noir, fazia-lhe uma proposta para encenar Samuel Beckett. Seria sua primeira incursão pela obra do autor irlandês em seus 60 anos de carreira. Antes de dizer o que acha, ela espera. Pausa. Leva três segundos em silêncio. E só então aceita. Não como quem decide. Mas como se cedesse a um chamado: “Ah, mas aí fica muito tentador…”, disse.

Na semana em que vai ao ar o último capítulo de Amor à vida, novela da qual participa, Nathalia tem as horas contadas. Passou por São Paulo no domingo e concedeu toda a entrevista sentada em uma poltrona para não se cansar ainda mais. Enfrenta uma árdua rotina de gravações. E, apenas naquele dia, já havia feito três ensaios da peça antes de parar para a conversa. Mas a atriz parece gostar desse clima algo tumultuado que antecede a estreia de Tríptico Samuel Beckett, que chega ao CCBB na sexta [31/1]. “É o período que mais amo em um trabalho, esse dos ensaios. O momento das descobertas, da procura, da troca”, diz ela. “E como em Beckett não há texto raso, as emoções nele não se esgotam, há sempre uma vibração nova.”

Existe novidade no que o autor oferece à atriz e também no seu contato com essa companhia de atores – comprometida com um teatro de experimentação. “Muita gente acha que eu, essa criatura terminal, não teria diálogo com o que se está fazendo aqui”, graceja ela. Mas Nathalia não é a única a transitar por zona desconhecida nessa montagem.

O próprio Club Noir ousa lançar-se por outro caminho. “Esse texto vem para forçar o grupo a sair da sua zona de conforto”, pontua o diretor. Desde a montagem O quarto (2008), a companhia forjou um sistema cênico bastante reconhecível: momentos de completa escuridão, iluminação rarefeita, falas pausadas e movimentação econômica.

Toda essa atmosfera diáfana vai, indubitavelmente, ao encontro do que está proposto pela escrita de Beckett. “Mas como eu iria fazer para dar forma ao texto sem reafirmar o que já estava sendo colocado por ele?”, questiona Alvim. “Era importante criar algum tipo de tensão ou ruído entre a encenação e o texto”, conclui.

Em Tríptico Samuel Beckett não haverá penumbra. Nem sombras. “Tudo será menos hierático, menos solene”, observa o encenador. Diante da luz, três atrizes – além de Nathalia, Juliana Galdino e Paula Spinelli estão no elenco – tentam dar corpo a um fluxo incontrolável de linguagem. Uma criação em que não há propriamente uma história a ser contada. Apenas esboços narrativos: descrições de jogos mentais, reminiscências da infância do narrador. Lampejos de suas relações familiares ou conjugais. “Passagens que servem muito mais para produzir intensidades do que para narrar efetivamente”, comenta o encenador, que também assina a tradução e a adaptação.

A presença de três mulheres de idades diferentes em cena cria um enigma: Não são figuras distintas. Algo as une. Mas também não se trata de uma única mulher visitada em fases da vida: a infância, a maturidade e a velhice. É mais complicado que isso. Como a noção de individualidade não se constitui nesses textos, não existem propriamente personagens. “Não da maneira como os conhecemos, com uma gênese e uma motivação definidas”, ressalva Nathalia. “A procura de Beckett é por nomear o inominável, por encontrar uma forma exata de dizer.”

Nathalia critica esvaziamento da palavra no teatro

As três novelas visitadas no espetáculo não foram concebidas para o teatro. Escritas na fase final da trajetória de Beckett, nos anos 1980, Para o pior avante, Companhia e Mal visto, mal dito são mostras de uma literatura em que os gêneros se confundem. Onde convivem traços do drama, da prosa de ficção e da poesia.

Parte da crítica considera o conjunto como uma resposta do escritor à sua trilogia Molloy, Malone morre e O inominável – romances que escreveu no pós-guerra. As obras podem ser lidas ainda como um desdobramento de seus experimentos da década de 1960. À época, o autor de Esperando Godot já lidava com uma problemática semelhante. Optava, porém, por textos mais breves, reduzidos a não mais do que frases ou parágrafos.

A despeito das dificuldades de encenação, outros artistas já se arriscaram pelos textos dessa última trilogia beckettiana: Gerald Thomas no teatro La Mamma de Nova York. A cia. Mabou Mines, reconhecida como expoente do teatro avant-garde norte-americano.

Para além da recusa ao tom crepuscular, uma das diferenças da atual versão em relação a esses experimentos anteriores está na escolha de mulheres para protagonizar a obra. Ainda que não possuam nomes no original, lá é nítida a presença masculina. “A simples presença de um homem já evoca, automaticamente, um mecanismo de sentido, um tipo de discurso intelectual. A mulher, ao contrário, é puro enigma”, considera o diretor.

Atriz concilia estilo elegante com apego à literatura

O crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) chamava Nathalia Timberg de a mais “europeia” das atrizes brasileiras. A percepção considerava, obviamente, a formação da artista, que estudou em Paris sob a tutela de grandes mestres, como Jean-Louis Barrault. Mas também não menosprezava o estilo que se tornou marca da intérprete: a elegância em cena, a aversão a qualquer traço histriônico, a precisão técnica no manejo da voz e do corpo.

À carreira extensa na TV, Nathalia conciliou uma profícua trajetória teatral. Nunca interrompida. Sua primeira peça profissional data de 1954, Senhora dos afogados, de Nelson Rodrigues. Ali, já estava expresso o seu comprometimento com um teatro que valorizasse a palavra. “Existe hoje um esvaziamento terrível da palavra e um consequente empobrecimento do pensamento. O uso da palavra na sua riqueza vem sendo abandonado”, observa a atriz. “Isso sempre me interessou. E, cada vez menos, percebo diretores interessados em trabalhar em torno da literatura.”

Para acompanhar o seu percurso profissional é preciso atentar também a sua passagem pelo TBC – Teatro Brasileiro de Comédia entre os anos 1950 e 60. Nathalia Timberg desenvolveu-se como atriz ao lado de Ítalo Rossi, Sergio Britto, Eugenio Kusnet. Faz parte de uma geração que encarava o ofício com rigidez, disciplina, dedicação.

Foi durante esse momento que participou de marcantes encenações, como Um panorama visto da ponte (1958), de Arthur Miller, Pedreira das almas (1958), de Jorge Andrade, e As almas mortas (1961), de Nicolau Gogol. Com companhias da época, como a de Maria Della Costa, perseverou pelo caminho e esteve em montagens como a de Anjo de pedra (1960), de Tennessee Williams.

Nos anos 1980, a aproximação com o Teatro dos Quatro rendeu trabalhos significativos, com incursões por Tchekhov, em O jardim das cerejeiras (1989), e Pirandello em Assim é… (se lhe parece) (1985).

A predileção pelos grandes dramaturgos universais não a afastou, contudo, do contato coma cultura popular. Na década de 1970, Nathalia Timberg criouo Circo do Povo, teatro baseado em uma lona de circo onde encenou de Martins Pena a adaptações da literatura de cordel. “O Brasil é um país de dimensão continental, a mitologia de uma região não se comunica com a de outra. Esse projeto foi das coisas mais importantes que fiz”, conta ela. “Era um momento difícil, havia a ditadura, muitos colegas não conseguiam acompanhar porque precisavam sobreviver de outras formas. Mas foi bonito ter virado as costas ao teatro que eu prefiro, que é o da discussão de ideias, para ir até as fábricas e levar esse sonho.”

:.: Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, página C1, em 29 de janeiro de 2014.

:.: Informações sobre a temporada que vai até 14/4, aqui.

Ficha técnica

Texto: Samuel Beckett

Direção, tradução e adaptação: Roberto Alvim

Com: Nathalia Timberg, Juliana Galdino e Paula Spinelli.

Trilha sonora original: LP Daniel

Cenografia e Iluminação: Roberto Alvim

Figurinos: Juliana Galdino

Assistente de direção: Ricardo Grasson

Cenotécnica: Juliana Fernandes

Direção de produção: Marcelo Rorato

Produção executiva e coordenação Administrativa: Maria Betania Oliveira

Registro em vídeo: Edson Kumasaka

Fotografias: Daniel Seabra

Programação visual: Felipe Uchôa

 

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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