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Crítica

‘Gonzagão’ remexe lenda com questão de gênero

19.2.2014  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Silvana Marques e Marcelo Rodolfo

Na esteira das produções que homenageiam os grandes nomes da música brasileira, Gonzagão – A lenda destaca-se por remeter mais ao imaginário popular nordestino que aos conflitos pessoais ou às curiosidades da indústria de entretenimento. Talvez seja esse, justamente, o segredo da longevidade do espetáculo que estreou no Rio de Janeiro em 2012, ano do centenário do nascimento de Luiz Gonzaga, depois fez temporada em São Paulo e em Salvador, regressou para o Rio e agora se encontra em turnê por Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe.

O título tem um apropriado duplo sentido. O musical, dirigido por João Falcão, não pretende ser uma biografia do Rei do Baião. Ao contrário, é uma homenagem poética, vencedora da edição carioca do Prêmio Shell em 2012. Como acontece com todo personagem histórico, a vida de Luiz Gonzaga tem passagens que não são consenso entre seus biógrafos, nem mesmo entre aqueles que o conheceram ou foram seu amigo.

A “lenda” do título, portanto, é uma forma ambígua de se referir ao lado mítico da vida de Luiz Gonzaga e, ao mesmo tempo, destacar sua importância na cultura brasileira. Esse expediente é anunciado por um dos narradores, logo na primeira fala do espetáculo: “Pedimos vossa licença/ Pra desfiar uma história/ Um fabuloso destino/ Contando assim de memória/A aventura de um menino/ Em seu caminho pra glória”. Diante da falta de informações sobre a vida de Gonzagão, o recurso à “lenda” serve também para preencher as lacunas e criar uma história coerente. Ou, na fala do narrador: “O resto nós deduzimos/juntando pista com pista”.

No palco são oito atores e uma atriz. A opção teatral foi criar uma trupe que se apresenta para contar a lenda do Rei Luiz no sertão do Araripe. Começa com o encontro imaginário entre Luiz Gonzaga e Lampião, outro personagem do imaginário nordestino. De um desafio entre o Rei do Baião e o Rei do Cangaço surgem as histórias de suas duas companheiras (Nazarena e Odaléa na vida real, Rosinha e Morena na obra de João Falcão), de como ele aprendeu a tocar sanfona com seu pai, Januário, e da criação do baião. Narra ainda sua ida para o Rio de Janeiro e um encontro com o filho, Gonzaguinha, cuja tensa relação sempre foi alvo das revistas de celebridades.

As músicas não são apresentadas em ordem cronológica, mas se encaixam na trama para ilustrar a história, mesmo procedimento utilizado nos recentes musicais que homenagearam Tim Maia (Vale tudo, direção de João Fonseca) e Lupicínio Rodrigues (Vingança, direção de André Dias, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo – leia reportagem aqui). Em Gonzagão – A lenda são quase 40 composições, a maioria bem conhecida do público, que muitas vezes se empolga e acompanha cantando baixinho. Estão lá Cintura fina, O xote das meninas, Qui nem jiló, Pau-de-arara, Asa branca e Assum Preto.

Nove atores tocam e cantam o Rei do BaiãoSem créditos

Nove atores celebram o Rei do Baião

Os músicos tocam ao vivo, mas vão além da sanfona, zabumba e triângulo, os três instrumentos típicos do baião. A direção musical de Alexandre Elias acrescentou outros, como rabeca, viola e violoncelo. O taxista e sanfoneiro Marcelo Mimoso canta e narra a história na qual os atores assumem diferentes personagens e ainda compõem o coro. A cantora Larissa Luz, do grupo Araketu, substitui a atriz Laila Garin, que deixou a montagem para ser a protagonista de Elis, a musical, em temporada paulistana a partir de 14 de março no Teatro Alfa.

O cantor e ator Adrén Alves destaca-se no elenco não só por sua voz potente e de rara extensão vocal, mas também por uma bem desenhada androginia que não cai no caricato nem no patético. É sua presença que cria um contraponto à oposição macho/fêmea presente no musical. Larrisa Luz é a única mulher do elenco – e justamente por isso seus personagens apresentam-se como centro da disputa entre os homens. Alves está em múltiplos lugares, ora colocando-se como um dos homens que lutam pela atenção de Larissa ora mais além, fora do binômio de gênero. Nada mais apropriado para lançar novas luzes sobre a obra de Luiz Gonzaga, artista que com simplicidade antecipou as discussões pós-modernas do feminismo e da Teoria Queer: “Que diferença da mulher o homem tem?/…/ Se for reparar direito/ tem pouquinha diferença”.

Ficha técnica:

Texto, direção e roteiro musical: João Falcão

Direção musical: Alexandre Elias

Com: Adrén Alves, Alfredo del Penho, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Paulo de Melo, Renato Luciano, Ricca Barros, Larrissa Luz, Marcelo Mimoso

Direção de movimento: Duda Maia

Direção de produção e idealização: Andrea Alves

Cenografia e adereços: Sérgio Marimba

Figurinos: Kika Lopes

Iluminação: Renato Machado

Preparação vocal: Carol Futuro

Arranjos: Alexandre Elias e músicos

Sound designer: Fernando Fortes

Visagismo: Uirandê Holanda

Assistente de direção: João Vancini

Assistentes de direção musical: Beto Lemos e Carol Futuro

Músicos: Beto Lemos, Daniel Silva, Rick de la Torre, Rafael Meninão

Programação visual: Gabriela Rocha

Fotografia: Silvana Marques e Marcelo Rodolfo

Produção executiva: Samara Martins

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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