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Crítica

‘Orlando’ explora os gêneros que nos habitam

4.2.2014  |  por Mayara de Araújo

Foto de capa: Carol Veras

O artista é o Atlântico. Pacífico. Leão. Oceano e fera. Afoga e devora ­– cantadas, essas frases recebem o espectador de Orlando, montagem do Grupo Expressões Humanas, adaptado do romance homônimo de Virginia Woolf (1882-1941), publicado em 1928. A canção de boas-vindas dá o tom do que se pode esperar do espetáculo – um desafio a qualquer ator, que precisa assumir esta dupla condição, de “oceano” e de “fera”, para encenar Orlando.

Justamente por que o personagem de Woolf é, em essência, mar aberto, imenso ­– em vitalidade, já que se mantém vivo por 350 anos; e em temperamentos, estados de espírito. Orlando é diverso, como poucos; extremamente sensível, passional, que se deixa enfurecer e comover pelo que lhe rodeia. Por outro lado, é também feroz e dotado de grande fortaleza. De outro modo, como poderia sustentar, em tantos anos, caráter e ingenuidade quase infantis? Sob esse aspecto, o protagonista tem um quê de quixotesco, pois lida com a realidade como quem recebe uma rosa: ainda que dedique a ela todo cuidado e lirismo, não sai ileso de seus espinhos.

Também os atuadores não saem ilesos: revelam-se ao dar vida a um personagem tão transparente. A estrutura escolhida para esta adaptação reforça e eleva a função dos atores ao rodeá-los de um cenário mínimo e de um figurino rico, mas igualmente minimalista. Os elementos cênicos ajudam a contar a história, mas não lhes servem completamente de bengala. Ou imergem na história e encontram seu Orlando ou fracassam.

A disposição do público no espaço cênico também lhes aumenta a responsabilidade: as cadeiras são dispostas em forma de “U”, margeando a cena com grande proximidade. Durante a encenação, algumas marcações deixam os atores tão próximos da plateia que se pode sentir a respiração deles. Todos esses elementos contribuem para a imersão dos espectadores, que não conseguem se estafar, apesar das duas horas e meia de espetáculo.

Ramos, um dos tripés da adaptação da obra de Woolf

O romance biográfico de Woolf, que narra em parte a própria história de vida da autora, trata de um jovem inglês, nascido na Idade Moderna, que, durante uma estada na Turquia, acorda mulher. Segundo Herê Aquino, diretora, uma das intenções do grupo ao adaptar Orlando era justamente discutir as ideias de masculino e de feminino e as suas relações com a condição humana.

Particularmente, creio ainda não ter visto um espetáculo que lidasse com essa temática de uma forma tão sensível e natural. Em Orlando, o gênero é quase um estado de espírito, como se todos nós tivéssemos algo de masculino e de feminino, dos quais nos valemos em circunstâncias distintas. O tempo – amigo generoso do protagonista – ensina-o isto muito bem: a seduzir, cativar, homens e mulheres justamente por sua postura diversa, dupla, mas não ambígua – já que ambiguidade pode soar como oposição, equívoco.

Aqui, ressalto o literalmente suado trabalho de preparação dos atores nesse processo, durante o qual conseguiram encontrar cada um seu modo de dar vida ao biografado.

O Orlando de Marina Brito exala feminilidade – é delicado, sensível, mas inabalável. O de Murilo Ramos é, talvez, o mais quixotesco – sôfrego, afetado, passional e, por isso, caloroso. Já o de Juliana Veras é, por sua vez, o mais masculino deles – tem um ar de cavalheiro, uma sedução sutil e austera. Dono de si. E todos eles são Orlando.

Musical

A canção que recebe a plateia no início do espetáculo é apenas a primeira de muitas. Para melhor traduzir Orlando, o grupo decidiu-se por desenvolver um repertório autoral, específico para a montagem. Para tanto, contaram com o competente trabalho do músico Moisés Filipe e com o acompanhamento de Juliana Veras, também musicista. Trata-se, portanto, de um duplo processo de criação artística: cênico e musical.

Juliana, aliás, comenta sobre isso em depoimento no encarte do espetáculo: “Nos outros processos que vivenciei com Herê, no Grupo Expressões Humanas, a musicalidade já tinha um direcionamento geral no início, mas agora, a proposta era a criação surgir na euforia dos ensaios, mesmo que fosse lapidada posteriormente”, revela. De fato, percebe-se o caráter visceral da música composta para a obra, como se uma não pudesse estar apartada da outra, nascidas – cena e canção – da mesma catarse.

Entre os elementos que dão vida ao espetáculo, vale destacar o cuidado com a adaptação do texto, assinada por Herê Aquino e Rafael Barbosa (considerado uma boa surpresa entre a dramaturgia cearense atual). Alguns desafios pareciam bem definidos: o primeiro deles é, obviamente, cronológico: como levar quase quatro séculos para o palco? O segundo é da ordem das transformações do protagonista, incluindo sua mudança de sexo: de que modo se quer expor esse momento, dotado de uma enorme carga psicológica, poética e política.

Quanto a isto, acredito que o grupo agiu bem ao assumir o bom e velho dito: “menos é mais”. O minimalismo que marca toda a encenação foi certamente um excelente caminho para traduzir a biografia para o espaço cênico.

O uso de metáforas e da representação de grandes acontecimentos a partir de pequenas imagens resolvem trechos da narrativa e situam o leitor na ordem cronológica. A transformação de alguns objetos, como a pena, que vira caneta e, mais tarde, máquina datilográfica, também ajuda a ilustrar.

Assim, equilibra-se bem a ideia de contemporaneidade da encenação, que se usa de jogos cênicos metafóricos, mas não cai no clichê de frases soltas, sem nexo. Ao contrário, amarra-se bem a colcha diversa e resistente de retalhos que parece ser a vida de Orlando, ao longo da qual – como diria Virgínia – “nada mudou, apenas o sexo”.

.:. Publicado originalmente no Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3, em 12 de dezembro de 2013.

Orlando. Sáb. e dom., às 20h. Teatro Sesc Iracema (Rua Boris, 90, Praia de Iracema, Fortaleza. R$ 20 e R$ 10. Até 23/2.

Ficha técnica

Texto: Virginia Woolf

Adaptação: Herê Aquino e Rafael Barbosa

Direção: Herê Aquino

Com: Juliana Veras, Marina Brito e Murillo Ramos

Direção musical: Juliana Veras

Músico: Moisés Filipe

Figurino: Ruth Aragão

Iluminação: Wallace Rios

Fotos e projeto gráfico: Carol Veras

Natural de Maranguape. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. Subeditora do Caderno 3, editoria de cultura do jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza, para o qual escreve sobre diversas linguagens artísticas, mas sobretudo teatro. Agraciada com o Prêmio Destaques do Ano 2013, do Grupo Quimeras de Teatro, por sua atuação na difusão do teatro cearense através do jornal impresso. Fez teatro amador por dez anos, atuando, escrevendo e dirigindo espetáculos.

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