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Crítica

‘Tribos’ firma semântica em torno da surdez

14.2.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Caldas

Em Tribos (2010), sua terceira peça, a inglesa Nina Raine correlaciona linguagem e pensamento com solidez digna das narrativas do conterrâneo Oliver Sacks, biólogo e neurologista conhecido pelo talento literário aplicado aos relatos clínicos. A dramaturga, que surgiu na cena londrina há oito anos, transforma a surdez congênita ou adquirida em epicentro semântico dos conflitos de uma família em que o filho caçula cresce alfabetizado pela leitura labial em detrimento da língua de sinais. O resultado é um drama de excertos cômicos que combina arte, ciência e cidadania sem moralizar ou soar piegas. No que a montagem brasileira capta bem nas formas e ideias do diretor Ulysses Cruz e dos produtores e atores Antonio Fagundes e Bruno Fagundes.

Billy passou infância e adolescência lendo a fala tonitruante de pai, mãe, irmã e irmão – um quarteto pouco dado a escutá-lo. Até que a namorada, Sylvia, lhe descortina o admirável mundo novo da língua dos gestos. As mãos ampliam exponencialmente as formas de sociabilidade com os pares da deficiência auditiva. Senso de pertencimento que atravessa a rua, a escola ou o trabalho. Resta a ele desbravar alteridade dentro de casa.

Os personagens Billy, vivido por Bruno Fagundes, e Sylvia, por Arieta Correa, são complementares no discurso amoroso e na cultura da deficiência auditiva. Ela é filha de pais surdos, nasceu escutando desde a barriga da mãe (possivelmente o primeiro sentido de contato do feto com o mundo), especializou-se na pedagogia equivalente à Língua Brasileira de Sinais (Libras) e agora convive com o diagnóstico de avançada redução da capacidade do seu sistema auditivo.

As atuações de Bruno e Arieta são basilares nesse projeto. É por meio deles que o público não familiarizado adentra o universo da surdez. Em ambos as técnicas de Libras ou da leitura labial não se sobrepõem à naturalidade das ações. Bruno apodera-se do palco com grau de elaboração incomum para a sua juventude e a complexidade do papel desse estranho no ninho. Arieta compõe a namorada com estranhamento sutil, espécie de claro enigma que surge para aflorar as disfunções de cada um.

Christopher, o pai interpretado por Antonio Fagundes, não esconde a intransigência que cerceou o crescimento de Billy. A arrogância intelectual – ele é crítico e professor universitário – fica patente nos comentários sardônicos e na caricatura do curso de mandarim que faz a distância. Como a dramaturga, o ator tampouco julga o personagem e o dota de contornos carismáticos.

Elenco da peça inglesa encenada por Ulysses CruzSem créditos

Elenco da peça inglesa encenada por Ulysses Cruz

A autora de Tribos aprofunda a dissecação da linguagem no modo como desenha os demais integrantes da família. E o elenco não decepciona. A mãe e dona de casa Beth (Eliete Cigaarini) escreve um romance que não deslancha, bloqueio criativo a ver com a voz resignada sob aquele teto. Os filhos mais velhos retornam ao lar depois de voos solos malsucedidos. O pós-graduando Daniel (Guilherme Magon) sofre de esquizofrenia, alucinado por vozes. A cantora de ópera Ruth (Maíra Dvorek) não vai além das apresentações em pubs.

Nesse enredo de ilhas humanas abaladas a encenação de Ulysses Cruz aciona códigos de silêncio e de ruído que permeiam a escrita de Nina Raine. O desafio da frontalidade na boca de cena gigante do Tuca e seus 672 lugares é vencido pela sincronia das atuações e pela organização do espaço cênico. Vazios são assumidos com desprendimento. Imagens abstratas ou vocábulos projetados num telão ao fundo atestam que a cenografia de Lu Bueno, a luz de Domingos Quintiliano e a trilha de André Abujamra dialogam inspiradamente. Som e movimento ampliam as metáforas da obra e suas reflexões a respeito da precariedade das relações interpessoais.

Tribos – Sex. e sáb., às 21h30; dom., às 18 h. R$ 60 e R$ 70 (sáb.). Tuca (r. Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 11-3670-8455). Até abril.

.:. Publicado originalmente no Valor Econômico, caderno Eu& Fim de Semana, p. 29, em 14/2/2014.

.:. O site do espetáculo, aqui.

Ficha técnica:

Texto: Nina Raine

Direção: Ulysses Cruz

Tradução: Rachel Ripani

Com: Antonio Fagundes, Arieta Correa, Bruno Fagundes, Elite Cigaarini, Guilherme Magon e Maíra Dvorek

Figurinos: Alexandre Herchcovitch

Cenografia: Lu Bueno

Iluminação: Domingos Quintiliano

Trilha sonora: André Abujamra

Assistência de direção: Rachel Ripani

Fotos estúdio: Jairo Goldflus

Fotos de cena: João Caldas

Vídeo cenário: Midiadub + ninguém

Assessoria de imprensa: Coletiva Comunicação

Programação visual: BUMMUB

Tradutora e intérprete de Libras: Mirian Caxilé

Cenotécnicos: Denis Nascimento, Jorge Ferreira, Marcelo Feitosa, João Pereira, Guilherme Nascimento e Fábio de Souza

Produção de arte: Lívia Burani

Assistente de figurinos: Daniel Raad

Assistente de cenografia: Moshe Motta

Operação de luz: Marcos Favero

Operação de som: Kleber Marques

Equipamentos de projeção: ON Projeções Ltda

Contabilidade: Contábil Lagoa Azul

Assistência de produção e operação de vídeo: Danny Cattan

Direção de produção: Germano Soares Baía

Parceria: Bottega D’Arte Produção Artística e Cultural

Produtores associados: Antonio Fagundes e Bruno Fagundes

Realização: Tribos Produções Culturais

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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