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Nota

Incidente durante solo de Angélica Liddell sequestra a dialética

14.3.2014  |  por Kil Abreu

O problema dos “ativistas” que foram ontem ao Teatro Cacilda Becker dispostos a sacrificar o trabalho da Angélica Liddell é que enxergam menos que o cavalo que dizem defender. Cheios dos legalismos, perderam a razão da causa já no primeiro momento, porque não queriam esclarecer nada, queriam tão somente fazer reféns, como inimigas, as cerca de duzentas pessoas que estavam ali. Um negócio autoritário, um roteiro de dramaturgia paupérrima, apoiado em meia dúzia de cartazes com frases-clichê escritas em péssimo português – o que não deixa de ser uma segunda forma de agressão ao trabalho (da maior contundência poética. Mas, a “tchurma” não era capaz de entender essas delicadezas).

O que fizeram foi algo como escrever “Isto não é um cavalo” sobre a cabeça de cavalo na Guernica de Picasso. Como todo ativista ideológico não avaliaram o quadro, não quiseram saber das circunstâncias. Nenhuma dialética, só a cartilha, cujo pressuposto é mais que correto: não temos o direito de maltratar os animais e usá-los a nosso bel-prazer.

A questão é que, no caso, se duvidar, o cavalo que faz a cena com a performer é mais bem tratado que a camarada que subiu ao palco para derramar dois ou três minutos de amargura quando pediram a ela, por fim, que fizesse o seu “discurso”.

Mas, não foi só. A galera, além de não conhecer o senso do ridículo também é pretensiosa, a ponto de querer nos ensinar, em má caligrafia, o que é e o que não é arte, sendo que o artístico para eles é linha direta com um moralismo triste em matéria não só de estética como também de política: tentaram fazer enquadramentos, como quem quer acusar, dizendo coisas do tipo: “Isso não é uma peça feminista!”. Não perceberam que de fato não se tratava de uma peça e menos ainda de um manifesto feminista. Não entenderam nada da meditação punk, da oração noturna e hardcore que acontecia ali.

Muitos diziam na saída, e com certa razão, que o “ato” se assimilava de alguma forma à coisa da performance e tal. Compreendo, mas em minha opinião a cena foi retomada já no prejuízo para um trabalho que se sustenta menos na fábula que no fluxo do pensamento e na intensificação dos estados que ela presentifica.

Mas, a essa altura os escoteiros já tinham partido, não a viram se jogar de corpo na fogueira. Deveriam estar já em casa contando pra mamãe a boa ação do dia. Perderam a chance de puxar o próprio tapete e de aprender a fazer militância em uma posição menos estéril – aquela em que o manifesto é escrito na própria carne, como a Angélica faz.

Em tempo: a organização da MITsp afirma que o cavalo desde sempre está cercado de cuidados. Teve visita do Centro de Controle de Zoonoses da Prefeitura e fiscalização do Ministério da Agricultura. Fica no haras, tem tratador e acompanhamento veterinário permanente.

Hoje não tem, mas amanhã, sábado, Yo no soy bonita volta ao Cacilda Becker. Mais informações, aqui.

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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