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Artigo

MITsp pode reavivar jornada cênica na cidade

5.3.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Dmitrijus Matvejevas

Faz 40 anos que a cidade de São Paulo abriga, com intermitência, encontros internacionais de teatro na acepção moderna que esses certames adquiriram no mapa-múndi após a Segunda Guerra (1939-1945). Vide os dois festivais estabelecidos em 1947 e tão paradigmáticos como diversos em seus formatos: o de Avignon, na França, e o de Edimburgo, na Escócia. Popularizar a arte teatral, interagir com outras manifestações-irmãs como a dança, a ópera, a música e as artes plásticas e abrir-se à cultura de outros países e continentes são algumas das premissas instigadoras. As mesmas que, em certa medida, moveram a atriz e empresária Ruth Escobar a promover, em 1974, o pioneiro Festival Internacional de Teatro em São Paulo, dois anos após Paris fixar o seu no calendário cultural, o Festival de Outono. Eram incomensuráveis os desafios de Escobar no país subdesenvolvido, de “terceiro mundo” e às voltas com o décimo aniversário da ditadura militar.

Aquela primeira, modesta e histórica edição contou apenas quatro espetáculos encenados pelo norte-americano Robert Wilson, pelo argentino Victor García e pelo português João Mota, da companhia A Comuna – Teatro de Pesquisa, esta com duas obras. Somando-se os “não espetáculos” do romeno Andrei Serban e do polonês Jerzy Grotowski, porque cancelados, é fácil compreender porque o encontro foi divisor de águas e influenciou gerações de criadores, críticos, teóricos, pesquisadores e espectadores, ali e nas oito etapas seguintes do então renomeado Festival Internacional de Artes Cênicas, o Fiac (1976, 1981, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998 e 1999).

O percurso desse evento entre o regime fechado e a redemocratização da sociedade, além do hiato de 15 anos desde sua interrupção embasam a saudação à chegada da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. A MITsp acontece de 8 a 16 de março e tem potencialidades para reinventar a vocação da capital paulista para as jornadas de interação com a arte ao vivo, reinserindo-a no circuito mundial dos festivais ou mostras de ponta.

O mais bem fornido catálogo do Fiac, o da 4ª edição, de 1994, inclui dossiê sobre as três primeiras versões. Em relação à mostra inaugural, 20 anos antes, o crítico, jornalista, escritor e ator Alberto Guzik (1944-2010) recorda como o Festival Internacional de Teatro “deixou sementes que frutificaram dezenas de projetos, alguns deles decisivos no processo de pleno amadurecimento do teatro e da cidadania brasileiros”¹.

Escobar e Wilson no primeiro festival em 1974Sem créditos

Escobar e Wilson no primeiro festival em 1974

Antes de discorrer sobre os artistas que se apresentaram na ocasião, Guzik fala dos que por aqui estiveram, mas não puderam levar suas criações à cena: Serban, então com 30 anos, que exibiria As troianas, de Eurípides, interpretada por elenco brasileiro, e Grotowski, com 40 anos, almejado com o mítico Apocalypsis cum figuris (1968), de seu Teatro Laboratório de Wroclaw, à época em circulação mundial.

Serban, hoje com 70 anos, chegou a selecionar atores locais, mas o Fiac não contornou a falta de recursos e o pânico dos generais do poder diante de uma montagem vinda de um criador nascido no leste Europeu dominantemente comunista ou socialista. Idem para Grotowski (1933-1999), que prospectou um espaço para a performance, em vão. Consolou-se em conhecer criadores brasileiros e proferir conferência no Rio de Janeiro ciceroneado pelo crítico e compatriota Yan Michalski (1932-1990), autor do texto de apresentação da primeira edição brasileira de Em busca de um teatro pobre (Editora Civilização Brasileira, 1971).

Se o público do país jamais assistiu a Apocalypsis cum figuris, teve mais sorte com As troianas. Serban voltou ao Brasil 17 anos depois, à frente do Teatro Nacional de Bucareste, incumbido de apresentar a sua Trilogia antiga, composta ainda de Medeia e Electra, na abertura da Bienal de Artes de São Paulo. Em 1991, as artes cênicas catalisaram as atenções do evento máximo das artes plásticas no país quando a curadoria de João Cândido Galvão (1937-1995) acolheu ainda entre as ações especiais o grupo catalão La Fura dels Baus com o espetáculo Suz/O/Suz.

Diretor, ator, produtor, cenógrafo, figurinista e depois crítico de arte, Galvão foi assistente de Bob Wilson na tumultuada montagem do espetáculo A vida e a época de Joseph Stalin (1973), título que a censura do regime militar forçou alterar para A vida e a época de Dave Clark na curta temporada realizada no Teatro Municipal de 9 a 13 de abril de 1974, dentro do Festival Internacional de Teatro (as três primeiras noites traziam partes do espetáculo que foi exibido em suas 12 horas integrais na última récita).

“Pelo que se viu em 1991, é preciso registrar que As troianas, caso tivesse chegado ao palco, seria um fermento tão poderoso quanto o Dave Clark de Bob Wilson”, afirma Guzik. Ele observa que, possivelmente, o mais precioso legado deixado pelo diretor norte-americano tomou forma nas mãos de Antunes Filho. “Em crise com o teatro convencional que fazia, irrequieto, ansioso, o encenador encontrou naquele trabalho o fluído de que carecia para azeitar as juntas de sua imaginação poderosa. A partir de então, o diretor começou a se afastar das convenções e a trilhar a vereda que o conduziu até Macunaíma, espetáculo seminal do teatro brasileiro dos anos 1980.”

García usa lonas na montagem de 'Yerma', de LorcaSem créditos

García usa lonas na montagem de ‘Yerma’, de Lorca

Guzik cita a segunda obra programada por Escobar, Yerma, texto do espanhol Federico García Lorca (1898-1936) encenado pelo argentino Victor García (1934-1982), sob encomenda da atriz e protagonista catalã Nuria Espert. García já era conhecido pelo impacto visual e ritualístico de montagens que assinou na cidade no final dos anos 60, também produzidas pela empresária: Cemitério de automóveis (1968), de Fernando Arrabal, e O balcão (1969), de Jean Genet, tendo este assistido à montagem.

O crítico lembra ainda da dificuldade da organização para garantir as apresentações da companhia portuguesa A Comuna – Teatro de Pesquisa, terceiro e derradeiro núcleo artístico agendado. Seu nome, obviamente, deixou a censura de cabelo em pé. Foram exibidas duas obras dirigidas por João Mota: o trabalho de batismo da trupe, Para onde is? (1972), reunião de dois clássicos de Gil Vicente, Auto da alma e Auto da barca do inferno, e a criação coletiva A ceia (1974), recém-estreada, um apanhado de Brecht, Gil Vicente, Antero de Quental, Mário Dionísio, Vinicius de Morais, a Bíblia e o Alcorão.

Completavam-se, assim, as quatro montagens alinhadas no festival embrionário de Ruth Escobar, recolhida da vida social e cultural desde o início da década passada, diagnosticado com o Mal de Alzheimer. A artista de ascendência portuguesa fez esse projeto navegar de vento em popa até o fim do século XX e do milênio, tendo como produtores executivos João Carlos Couto, Emilio Kalil e Walter Roberto Malta, entre outros colaboradores mais próximos, como a relações públicas Lulu Librandi. Tempos em que a gestão do Fiac era tributária das relações pessoais com o poder público. Quando não havia ou ainda eram incipientes as leis federais de isenção fiscal, a obtenção de verbas públicas ou privadas merecia citação nominal no programa ao senador, ao deputado, ao ministro, ao dirigente do banco ou da montadora, alguns deles alçados a patronos do evento.

Grotowski, FHC e Beatriz Segall na casa de Escobar, 74

Escobar gostava de sublinhar a fertilização da cena brasileira pelo Fiac. “A vinda ao Brasil de criadores e intérpretes como os que nos têm visitado ao longo dos anos representa uma oportunidade de troca, comunhão e confronto”, anotou no catálogo da sexta edição, em 1996². Dois anos depois, num post scriptum, ela como que já se despedia e passava o bastão da empreitada que manteve até 1999. “Será fundamental para São Paulo que o Serviço Social do Comércio, que tem dedicado parte extremamente relevante de seu trabalho ao incentivo das manifestações artísticas, tornando-se uma extensão do Ministério da Cultura, dê continuidade à promoção dessa atividade.”³

O Sesc SP, de fato, vira parceiro fundamental nas últimas edições. A partir de 1997, já em paralelo, a instituição passa a organizar sozinha grandes mostras artísticas convergentes de múltiplas linguagens. Essas ações ganham nomes variados, como Temporada Sesc Outono, Mundão e Balaio Brasil, passando a assumir o guarda-chuva Mostra Sesc de Artes em 2002. O leque às vezes alcança a casa das 150 atividades em suas unidades da capital. Desde que o Fiac fechou as cortinas, porém, as artes cênicas careciam de verticalidade à maneira dos eventos de excelência que a instituição promove em Santos: a Bienal de Dança (1998) e o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas (2010), também a cada dois anos, alternando ocupações do Mirada na capital com repertórios de companhia ou criadores afins.

É sob essa expectativa que a MITsp pode reavivar o espírito das jornadas cênicas que o Fiac semeou, significativamente, e nos conformes dos procedimentos de criação e produção vigentes na cena contemporânea. Nesses 15 anos, a cidade viu o experimentalismo espraiar-se e relativizar a hegemonia do teatro de entretenimento que tem e sempre terá seu quinhão de qualidade. Nesse ínterim, sobrevieram ecos de outros estados, como o Festival Internacional de Teatro de Londrina, o Filo; o Festival de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte, o FIT-BH; o Porto Alegre em Cena; e o Rio Cena Contemporânea. Para não dizer do Festival Internacional de Buenos Aires, o Fiba.

São inegáveis as colaborações de projetos paulistanos como a Jornada Sesc de Teatro (1989-1996), a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo (desde 2006), o Memorial da América Latina (1989) em seus primeiros três ou quatro anos e o Próximo Ato (2003) do Itaú Cultural – não por acaso, o Sesc é correalizador e o Itaú Cultural parceiro institucional da MITsp. Outro destaque é a novíssima, surpreendente e ousada 1ª Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo, que aconteceu de outubro a dezembro do ano passado sob o eixo “Realidades Incendiárias”, incluindo representantes de países cujas produções pouco ou nada conhecemos: Cisjordânia, Eslovênia, Tunísia e Líbano – a curadoria instigou e fincou alicerces para a valorização do risco em arte nas próximas edições, como deveria convir sempre ao ambiente universitário em diálogo com a sociedade.

Há 12 anos o município convive com o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, lei concebida a partir da luta dos artistas do Movimento Arte contra a Barbárie e que entende a cultura como dever de estado. A Lei de Fomento contempla anualmente a manutenção de até 30 núcleos artísticos de pesquisa continuada estabelecidos geralmente nas cinco zonas urbanas. Sua vigência corresponde à ampliação estética e geográfica dos horizontes do cidadão para com as artes cênicas, flexionando inclusive percepções outrora limitadoras de governantes e gestores quanto ao acesso da população e ao desenvolvimento do teatro.

'Gólgota picnic', do espanhol Rodrigo GarcíaSem créditos

‘Gólgota picnic’, do espanhol Rodrigo García, na MITsp

É desse lugar, do teatro de pesquisa, que falam os idealizadores da Mostra Internacional de Teatro, Guilherme Marques e Antonio Araujo. Com 22 anos de experiência em gestão e produção cultural, além da bagagem em criação como ator e diretor, Marques lança em 1998 o Encontro Mundial das Artes Cênicas, o Ecum, em Belo Horizonte, que aos poucos é estendido a outras cidades e ganha braços como o Ecum Fórum e o Ecum – Centro Internacional de Formação e Pesquisa em Artes Cênicas. O projeto é transferido para São Paulo no início de 2013, ocupando o antigo Teatro Coletivo na rua da Consolação, administrado em associação com o diretor e pesquisador Ruy Cortez e sede da instituição artístico-pedagógica Centro Internacional de Teatro Ecum (CIT-Ecum). A trajetória de Marques parece culminar agora numa espécie de cruzada para popularizar o teatro de pesquisa (os onze espetáculos da MITsp são gratuitos). Capta como novas e vigorosas feições formais e temáticas da cena brasileira tornaram o panorama mais complexo e pungente.

Sob curadoria de Araujo, diretor, pesquisador e professor da USP, cofundador do grupo Teatro da Vertigem 21 anos atrás, um dos artistas mais influentes do país na área e com trânsito no exterior (sua próxima montagem será coproduzida este ano pelo Festival de Avignon), a MITsp, portanto, insinua-se conceitual e territorialmente como demarcadora de novas convivências e contaminações globais no coração da metrópole. Conspiram para isso o entrelaçamento histórico da cidade com as artes cênicas, como resumidamente descrito, e os pensamentos crítico e autocrítico que a mostra internacional enseja .

.:. O site Teatrojornal vai participar da seção Olhares Críticos da MITsp, com análise de espetáculos e participação em debate.

.:. Leia aqui a primeira edição do tabloide da MITsp com mais reflexões sobre o encontro.

[1] GUZIK, Alberto. I Festival Internacional de Teatro (1974): tempo e ressonâncias. Catálogo do 4º Festival Internacional de Artes Cênicas: São Paulo, 1994, p. 31.

[2] ESCOBAR, Ruth. Apresentação. Catálogo do 6º Festival Internacional de Artes Cênicas: São Paulo, 1996, p. 4.

[3] Idem. Apresentação: A geografia de minhas viagens traduz a geografia de minh’alma. Catálogo do 7º Festival Internacional de Artes Cênicas: São Paulo, 1998, p. 3.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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