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Crítica

O campo ampliado das artes cênicas

13.3.2014  |  por admin

Foto de capa: Ligia Jardim

A presença da obra de Marcelo Evelin, De repente fica tudo preto de gente, na programação da MITsp, que é uma mostra de teatro, é uma questão interessante para se pensar. Os campos do teatro e da dança nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha. Diante do compromisso de escrever sobre um espetáculo de dança – e especialmente tratando-se de uma obra com o nível de complexidade da que está em questão – me vejo diante de um problema para a crítica: o paradigma das categorias como campos separados de experiência e saber. O fato de a minha formação ser em teoria do teatro, sem estudos específicos na área de dança, é algo que à primeira vista me constrange o pensamento. Mas, afinal, o que é dança? E o que é teatro?

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é uma questão para a crítica de teatro. O teatro contemporâneo e a dança contemporânea não se definem hoje por aquilo que os definia algumas (muitas?) décadas atrás, como por exemplo, no caso da dança, a coreografia, no caso do teatro, o drama; embora o discurso comum não tenha assimilado de fato essa virada de liberdade criativa. Ainda vemos críticos escrevendo que algo “não é teatro” com uma convicção constrangedora. Não é a coreografia que define a dança, nem o drama que define o teatro – e as noções mesmas de coreografia e de drama podem ser bem mais amplas do que costumamos pensar. Não é o caso de tirar de cena a coreografia, nem de superar o drama.

Em uma reflexão apressada (uma contradição em termos) me parece que a fundamentação conceitual do espetáculo De repente fica tudo preto de gente em um princípio da física, ou seja, a presença forte de uma ideia orientadora que não está restrita à categoria dança, é algo que amplia o campo, que liberta a criação da repetição de um mero exercício do fazer, de uma variação sobre procedimentos dados. É nesse sentido que me parece que o espetáculo em questão é para qualquer um, porque ele não demanda nenhum conhecimento prévio do espectador, ele simplesmente se dá à experiência. Penso que o contemporâneo não está em um conjunto de premissas estéticas e reflexões endógenas, mas na natureza da relação com o espectador.

Criadores originam de Japão, Holanda e BrasilSem créditos

Criadores originam de Japão, Holanda e Brasil

Com isso em mente, levanto o olhar para o contexto da MITsp para pensar o lugar deste trabalho no contato com outros assistidos até agora – até porque a ideia de contato e a subsequente contaminação entre corpos é algo que o espetáculo de Marcelo Evelin nos faz viver. O espectador é fisgado para dentro das obras em três instâncias diversas em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, Bem-vindo à casa e De repente fica tudo preto de gente. No primeiro, a relação é subjetiva, impalpável e demanda uma disponibilidade de espírito do espectador. No segundo, o público é convidado a fazer parte da situação ficcional que se estabelece. No terceiro, o espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Mas o preto das imagens criadas por Marcelo Evelin não é opaco. É um preto translúcido que convida o olhar para a beleza do escuro. Na prática da crítica, esse é o grande desafio: mais que discorrer sobre o que já se sabe, trabalhar a musculatura do olhar para enfrentar a escuridão. E o pensamento, como os olhos no escuro, precisa de tempo para começar a discernir as imagens nas sombras.

:. Texto escrito para o Coletivo de Críticos, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp.

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