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Crítica

Novas e velhas apostas em Curitiba

7.4.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Lina Sumizono - Clix/FTC

Foram dias agitados na capital paranaense, uma vez que a 23ª edição do Festival de Teatro de Curitiba terminou ontem. A programação da Mostra oficial incluiu 34 espetáculos, sendo sete estreias nacionais e quatro de grupos estrangeiros. A mostra paralela, Fringe, teve cerca de 400 atrações com três mil artistas.

Pode-se dizer que esta edição apostou em alguns eixos. Houve um crescimento significativo na presença internacional de espetáculos – foram cinco montagens de países como Chile, Inglaterra e Argentina. Boa parte do repertório da mostra foi dedicado a William Shakespeare, já que celebra-se, em 2014, 450 anos de seu nascimento. Destaque para Otelo, da companhia chilena Viajeinmóvil, e The rape of Lucrece, da Royal Shakespeare Company.

O trio de curadores (formado por Celso Curi, Lucia Camargo e Tânia Brandão) buscou valorizar a presença da dramaturgia contemporânea brasileira, com nomes como o jovem carioca Diogo Liberano, que propôs uma crítica à Copa do Mundo, e o cearense Silvero Pereira, que presenteou o público com a montagem BR-Trans, uma parceria do ator do coletivo As Travestidas com a diretora gaúcha Jezebel de Carli (da Santa Estação Cia. de Teatro) e que já passou por Porto Alegre em duas ocasiões.

O trabalho que chega ao espectador é apenas a ponta de um iceberg do universo trans. Durante seis meses, Silvero pesquisou com travestis, transformistas e transexuais de Porto Alegre, incluindo ruas e casas de show. O levantamento resultou na elaboração do espetáculo, que flerta com performance. Assim como em outras montagens deste festival, em BR-Trans não há uma representação no sentido formal da palavra, ou seja, não existe a construção do personagem, apenas a persona em cena.

Há de se ressaltar, ainda, as participações de grupo conhecidos, como as cariocas Cia. dos Atores e Armazém Cia. de Teatro, ambas com 25 anos de trajetória. Referência no teatro dedicado à pesquisa, a Cia de Atores mostrou três espetáculos feitos depois da saída do diretor Enrique Diaz, ano passado.
O grande destaque vai para Conselho de classe. Desta vez, quem assina a direção é Susana Ribeiro e Bel Garcia, com dramaturgia de Jô Bilac. Apostando em uma nova linguagem, o grupo se arrisca, com êxito, a desembarcar no realismo. No entanto, a desconstrução formal, característica sempre presente no trabalho da companhia, não se perde.

Ela aparece quando os atores (cinco homens) interpretam papéis femininos sem se utilizar de estereótipos – desta forma, há um ruído no mundo real. Eles provocam o público a relativizar questão de gêneros, uma vez que colocam homens em um universo majoritariamente feminino, composto por educadoras e pedagogas.

O grupo também apostou em dois solos. LaborAtorial buscou se estabelecer, desde o início, como um duo – envolvendo espectador e ator. É preciso que o público se deixe conduzir pela história e construa a cena com o ator, no caso, Marcelo Valle. Caracterizado como um espetáculo de experimentação, tem como foco principal a busca da relação do indivíduo atual com o outro e com o meio, bem como as transformações que acontecem a partir dos encontros.

Como estou hoje é o primeiro trabalho do coreógrafo João Saldanha, que também assina o texto, à frente de um espetáculo de teatro. No palco, Marcelo Olinto propõe uma reflexão questionando a construção de hábitos a partir do que vestimos.

A atriz Patrícia Selonk em ‘O dia em que Sam morreu’

Por sua vez, a Armazém Cia. de Teatro estreou no Festival de Curitiba, mas decepcionou com O dia em que Sam morreu. A companhia, responsável por Alice através do espelho e A inveja dos anjos, não é mais a mesma há tempos, a começar pela dramaturgia, assinada pela dupla Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes.

Se a poesia estava presente em Inveja dos anjos e, aos poucos, vinha se perdendo com Antes da coisa toda começar e A marca da água, nesta montagem se esvazia totalmente. O texto propõe um manifesto sobre o sistema de saúde – apesar da boa intenção, a execução é desastrosa: ocorre de forma panfletária e não condiz com a linguagem presente na montagem. Faltou unidade ao espetáculo.

Entre altos e baixos, o saldo do festival foi positivo, principalmente devido à maior inclusão (ainda que tímida) de espetáculos internacionais que deve se consolidar na próxima edição. É uma direção nova para o Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes eventos do gênero no País.

.:. A jornalista viajou a convite da organização do festival.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 7/4/2014.

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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