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Crítica

Sangrento e erotizado

20.5.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guto Muniz/FIT-BH

As celebrações pelos 450 anos de Shakespeare continuam a reverberar na agenda dos festivais brasileiros. No FIT – Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte, a tônica se manteve. A encenação de Hamlet, pela histórica cia. Berliner Ensemble, sinalizou o ponto máximo da programação.

Fundado por Bertolt Brecht, o grupo alemão trouxe ao país uma versão que destoa das abordagens mais clássicas e redimensiona o texto do bardo em imagens e sentidos. Em um cenário que se move constantemente, os ambientes do castelo de Elsinor são mais sugeridos do que ilustrados. Módulos brancos e geométricos, que se encaixam para formar as diferentes paisagens, reforçam ainda a sensação de que os dilemas existenciais do príncipe da Dinamarca estão livres dos condicionantes de tempo e lugar.

A contrastar com a assepsia do ambiente, a encenação do diretor Leander Haußmann opta por trazer um Hamlet ainda mais sangrento do que o original em seu percurso por vingança. O nobre será também um assassino feroz, capaz de arrancar as vísceras de Polônio – o tolo pai de Ofélia, e de depositar seu coração, ainda fresco, nas mãos da mãe, tal qual um troféu. O palco, inicialmente imaculado e de contornos abstratos, se verá tomado de destroços, terra e corpos.

É comum que as montagens optem por leituras mais abertas das situações criadas por Shakespeare. Hamlet está louco ou apenas finge a loucura? Seu pai veio de fato falar-lhe ou é uma alucinação?

Na produção da Berliner Ensemble algumas dessas perguntas parecem ser eliminadas em favor de uma interpretação mais contundente do texto. O pai assassinado não lhe aparece como visão nas brumas, mas lhe surge em sonho. As ações do protagonista são destemperadas ao extremo, sem as nuances de costume. E, à sua volta, todas as figuras surgem apenas como contornos de personalidades e não como personagens independentes. Tudo soa como projeção dessa mente em estado de sofrimento extremo.

A relação com Ofélia também surge muito mais erotizada do que se costuma presenciar. O afeto distanciado é substituído por cenas em que ela se joga com fúria em seus braços e rola ao seu lado embaixo dos lençóis. Mais um indicativo – pode-se supor – de que assistimos não propriamente a uma história, mas a um olhar muito particular e comprometido dessa trama.

Deslocada para o prólogo do espetáculo – e depois repetida ao longo da peça -, a cena do famoso monólogo do ‘ser ou não ser’ sublinha a centralidade da angústia de Hamlet. A perda paterna acionou um gatilho. Mas a dor desse homem já estava lá. Sempre esteve. Um sentimento sem origem nem fim.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C8, em 20/5/2014.

Trecho em vídeo de cena com Ofélia:

Ficha técnica:
Texto: William Shakespeare
Tradução: August Wilhelm Schlegel
Direção: Leander Haussmann
Dramaturgia : Steffen Sunkel
Com: Roman Kaminski, Traute Hoess, Christopher Nell, Norbert Stoß, Anna Granzer, Felix Home, Luca Schaub, Peter Miklusz, Georgios Tsivanoglou, Boris Jacoby, Joachim Nimtz, Peter Luppa, Martin Seifert, Johanna Griebel, Marcus Hahn, Rayk Hampel, René Hassfurther, Franz Jarkowski, Ulrike Just, Carsten Kaltner, Marc Lippert e Haiko Neumann
Figurinos: Andrea Schmidt-Futterer
Luz: Ulrich Eh
Estágio: Johannes Schütz
Batalhas: Rainer Werner

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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