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Crítica

Virá que eles viram

30.5.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Thiago Sabino

Ultrapassei algumas dificuldades para chegar ao Teatro II, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, dia desses, uma sexta-feira. Minha culpa, minha máxima culpa. Naquela sala está em cartaz, até o próximo domingo, o espetáculo Extraordinário, com o qual o Teatro do Concreto comemora seus dez anos de atividades. O texto é de Vinícius Souza e a direção, de Francis Wilker.

Confesso que implorei, sem sucesso, por um convite para assistir ao trabalho já na estreia. Não para fugir a comprar o ingresso – de preço gentil e com meia entrada para professores. Mas porque as estreias costumam ter calor especial, como todo mundo sabe. A pessoa com quem falei foi solícita, sim, mas certamente o corre-corre a impediu de atender a meu pedido enfático.

Depois, apesar das décadas de Brasília – cheguei à cidade nas fraldas, nos braços de Sara –, me perdi pelo caminho e dei voltas e voltas até achar o rumo do CCBB. Não é tão longe das asas, nem de difícil acesso; meu senso de orientação é que se mostra dos mais precários.

Finalmente chego ao Centro, pago o ingresso e avisto uma ex-aluna – que denuncia à colega, no caixa, minha condição de “animal doutor, sócio de uma entidade de sábios”, conforme diz o Charlatão de Feira na peça Woyzeck. Mas essa é outra história.

Com tais dificuldades, meu estado de espírito não era o melhor possível ao me sentar numa das cadeiras na plateia, pedindo licença à moça ao lado, que gentilmente alertou: “Está molhada”, disse ela. Eu quis entender e perguntei: “O quê?” Ela informou: “A cadeira”. Já acomodado, resignei-me: “Estava”.

Aline Seabra em ‘Extraordinário’, do Concreto (DF)

Deixei-me envolver pela história, embora relutantemente: no palco, a reunião de pessoas ávidas para noticiar ao país, talvez ao mundo, o aparecimento de alguém vindo de lugar distante, estranho, descrevendo em primeira mão seu aspecto e seus hábitos. Seres e fatos inéditos para a grande boca aberta da curiosidade pública: “Nem precisa cabeça, pois a boca/ nasce diretamente do pescoço/ e em vosso esplendor de auriquilate/ faz sol o que era osso”, disse Drummond.

A trama, embora simples, se constrói de jeito esperto. Os convidados para o evento chegam um a um, renovando, naturalmente, o interesse a cada entrada. Os laços com a vida real se fazem à base de críticas leves: há no grupo de personagens, por exemplo, uma pesquisadora francesa que só falta olhar os dentes dos demais mortais ao abordá-los.

Vê-se um jornalista veterano (fala, Nei), assim como há uma jornalista jovem, afoita, proclamando que estudou até o cansaço a respeito das tais figuras – agora referidas no plural – prestes a chegar. O local? A residência do jornalista mais velho, lugar ermo, ideal para entrevistas exóticas (boa cenografia, ressalvado que a mesa ao centro dificulta os passos do elenco). Aqui, me incomodaram um pouco os movimentos da atriz que interpretava a jornalista, quase sempre de costas para o público. Pode parecer anacrônico reclamar de atores que mantêm galhardamente as costas viradas para a plateia, ou do diretor que assim desenha o seu trajeto.

Quebram-se regras quando se têm outras a propor, ou motivo para quebrá-las. Creio que o discurso da moça, afinal boa atriz, ganharia com marcas menos gratuitas. Boa atriz, sim, conforme se nota adiante, quando sua personagem, indignada com a aparente inutilidade do encontro, estoura num piti feroz. Não é fácil gritar em público sem perder o equilíbrio. Ela o consegue, e o piti faz pleno sentido: para que estavam todos lá?

Nei Cirqueira e elenco sob codireção de Francis Wilker

O cinegrafista aparentemente ingênuo possui a sabedoria dos descomplicados. Há também o autoritário diretor ou produtor (se bem compreendi o personagem). O intérprete sustenta a sua criatura com eficiência, pecando embora pela repetição excessiva do gesto de estalar os dedos, a pretender que todos à volta se movam na direção que ele, o personagem, determina. Talvez seja quem mais circula em cena, dando algum corpo ao drama que ameaça esgotar-se, quando…

Quando vem o golpe de teatro, proposto como surpresa completa e que não posso, portanto, revelar qual é. Depois do convite que pedi sem obter e das muitas voltas que dei até chegar à sala, o susto fez a viagem valer ainda mais; creio que o espetáculo então já a tivesse premiado, descontadas possíveis faltas (interrogaria texto e desempenho, sugerindo que os aprofundassem).

Trata-se, ao final, dos nossos medos; fala-se de aferir o quanto somos tímidos – ou constantemente intimidados – em público. Apontam-se as nossas travas e neuroses. Naqueles minutos constrangedores, me senti como numa reunião de colegiado.

Esse é o assunto de Extraordinário, mistério mantido até pouco antes do desfecho. Não se pense em sofrimento coletivo, não: o que se oferece ali é um toque, uma dica, uma sugestão compassiva e bem-humorada. Não sem riscos, porém.

PS: É justo mencionar a exposição que se arma fora da sala, assinada pelos Irmãos Colagem, que me deixou curioso, mas que não comento por não ter tido tempo de vê-la com a necessária atenção. Ok?

O site do grupo brasiliense Teatro do Concreto, aqui.

Serviço:
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) – teatro II (SCES, Tc. 2, Cj. 22, Brasília.
Quando: Quinta a sábado, às 19h30; domingo, às 18h. Até 1º/6.
Quanto: R$ 10.

Ficha técnica:
Dramaturgia e programação visual: Vinícius Souza.
Com: Aline Seabra, Alonso Bento, Gleide Firmino, Jhony Gomantos e Nei Cirqueira
Cenografia: Amanda Cintra e Roberto Dagô
Figurinos: Eduardo Barón
Design de som: Cesar Lignelli
Operação de som: Douglas Fernandes
Design de luz: Diego Borges
Assistente de iluminação: Marcos Davi
Produção: Tatiana Carvalhedo (Carvalhedo Produções)
Assistência de produção: Julie Wetzel e Marcelo Nenevê
Assessoria de imprensa: Rodrigo Machado (Território Cultural)
Assessoria de mídias sociais: Laniér Rosa
Vídeos de divulgação: Gabriel Redigolo e Marcelo Nenevê
Fotos: Thiago Sabino
Colaboradores: Giselle Rodrigues, Willian Lopes e Sérgio Maggio
Codireção: Ivone Oliveira
Direção geral: Francis Wilker

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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