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Reportagem

Bufão do século XIX

6.6.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Martino Piccinini

Dramaturgo, poeta, jornalista, tipógrafo, gramático, louco… Essas são apenas algumas das atribuições dirigidas a José Joaquim de Campos Leão, vulgo Qorpo-Santo (1829-1883), como ele mesmo se intitulava. Para a diretora Inês Marocco, ele poderia ser definido como um bufão, “ele era uma figura visionária, à margem da sociedade e criadora de personagens grotescos, exatamente como um bufão”, relata ela, lembrando que Qorpo Santo viveu em uma Porto Alegre do século XIX.

Inês dirige o espetáculo Santo Qorpo ou O louco da província, que estreia hoje (5/6) no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. A peça é livremente inspirada no livro Cães da província, de Luiz Antonio Assis Brasil e no volume Enciclopédia de Q.S. Há, ainda, trechos de seis peças teatrais do escritor, entre elas, Um assovio e Eu sou vida não sou morte. A dramaturgia leva as assinaturas de Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana.

Vítima de um processo de interdição por loucura, a peça mostra Qorpo Santo como um personagem incompreendido por seus contemporâneos. Ao mesmo tempo em que sua vida transcorre no palco, a encenação, assim como no livro de Assis Brasil, tem como pano de fundo histórias fantásticas, adultérios, crueldades e crimes, como aquela que transpassa toda a trama: os míticos crimes da Rua do Arvoredo.

Aos poucos, a encenação revela um Qorpo Santo mais radical em suas ideias. Mostra os anos que ele exerceu o cargo de professor, o casamento com Inácia de Campos Leão, a obrigação que ele mesmo se impôs de viver afastado das mulheres para manter a santidade de seu corpo, bem como a pretensão de simplificar a gramática vigente fazendo coincidir uma letra para cada som pronunciado (daí que vem a escrita do seu nome com ‘q’), entre outras facetas do dramaturgo.

“Quando lemos sobre a vida dele, ficamos impressionados com a injustiça de que foi vítima. Hoje Qorpo Santo não seria considerado louco. Ele fazia denúncias que ainda são válidas, e isso incomodava os moradores da cidade”, comenta Inês. Ela também indica que ele era um homem de vanguarda: seu texto A separação de dois esposos revela, talvez, o primeiro casal homossexual da dramaturgia brasileira. Qorpo Santo nunca montou suas peças, consideradas pela especialista “muito difíceis, cruas, com um linguajar da época muito complicado”.

O dramaturgo, natural de Triunfo, ganhou sua primeira montagem apenas em 1966, quando foram encenados três textos de sua autoria, descobertos pelo professor Aníbal Damasceno Ferreira (falecido em 2013) e sob direção de Antônio Carlos de Sena. Mas foi apenas quando a montagem viajou para o Rio de Janeiro, em 1968, para participar do Festival Nacional de Teatros de Estudantes, que Qorpo Santo ganhou fama nacional, sendo considerado precursor do teatro do absurdo.

Contudo, parte desta teoria é contestada por alguns pesquisadores que, inclusive, apontam outros caminhos, como o de que ele era “um surrealista”. Inês se refere à teoria do pesquisador Eudinyr Fraga, que publicou o livro Qorpo-Santo – Surrealismo ou absurdo (editora Perspectiva). Nele, Fraga contesta as correntes na atualidade e mostra que se há afinidades com a vanguarda teatral (e elas de fato existem) o parentesco mais orgânico seria com o surrealismo. Teorias à parte, o fato é que ele pode ser considerado o dramaturgo brasileiro mais controverso. “A literatura de Qorpo Santo era revolucionaria para a época, só podia ser considerado louco”, declara Inês.

Atriz do espetáculo dirigido por Inês Marocco

A diretora, também professora da Ufrgs, montou premiadas adaptações de Erico Verissimo como O sobrado (2008), e Incidente em Antares (2012), sempre ao lado do Grupo Cerco. Desta vez, ela encara o desafio ao lado do grupo Santo Qoletivo, a exemplo do Cerco, também é uma companhia que se formou dentro do Departamento de Arte Dramática da Ufrgs.
Os atores Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Jeferson Cabral e Rodolfo Ruscheinsky se revezam para interpretar Qorpo Santo. Também integram o elenco Gabriela Boccardi, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana e Renata Cieslak. A trilha sonora é executada ao vivo pelos atores.

Além do espetáculo, o grupo Santo Qoletivo está produzindo um seminário sobre o escritor, que inclui um roteiro pelo Centro Histórico, percorrendo lugares onde o dramaturgo esteve. A atividade deve ocorrer no fim de julho, no Aquecendo em cena, programação que antecede o Festival Porto Alegre em Cena.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 5/6/2014.

Serviço:
Onde: Teatro Bruno Kiefer na Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736, 6º andar, Porto Alegre, tel. 51 3221-7147).
Quando: Quinta-feira a domingo, às 20h. Até 15/6.
Quando: R$ 20,00

Ficha técnica:
Direção: Inês Marocco
Dramaturgia: Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana
Com: Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Gabriela Boccardi, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana,Renata Cieslak e Rodolfo Ruscheinsky.
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochoa
Cenografia e arte gráfica: Martino Piccinini
Orientação musical: Adolfo Almeida Jr.
Assistência de direção: Gabriela Boccardi e Magda Schiavon
Criação e execução da trilha sonora: Eduardo Schmidt e o grupo.
Produção: Gabriela Boccardi, Jeferson Cabral, Ketti Maria e Renata Cieslak
Assessoria de imprensa: Juçara Gaspar

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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