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Reportagem

O policial e o black bloc sem maniqueísmos

21.6.2014  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Davi Marcos

A cidade desponta como protagonista de Entrevista com vândalo – mais exatamente, o Rio de Janeiro tomado por manifestações desde junho de 2013. A necessidade de falar sobre o aqui/agora é partilhada pelo diretor Marcus Vinícius Faustini e pelo antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares. A conexão com a atualidade, inclusive, fez com que ocupassem cargos importantes: Soares foi secretário de Segurança Pública durante o governo de Anthony Garotinho e Faustini, secretário de Cultura de Nova Iguaçu na gestão de Lindberg Farias. O resultado do encontro artístico entre os dois é conferido o Espaço Cultural Municipal Sergio Porto, no Rio de Janeiro.

Ambos vinham ensaiando uma parceria. “Começamos a pensar num projeto juntos depois que eu assisti a Confronto. Até que as manifestações vieram”, destaca Faustini, citando a peça escrita por Soares e Marcia Zanelatto e dirigida por Domingos Oliveira. Em Entrevista com vândalo, Soares prioriza figuras localizadas em lados opostos do conflito: o policial e o black bloc. Apesar de serem constantemente mencionadas, segundo Faustini ainda há muito a dizer sobre elas. “Soares aborda o policial e o black bloc com humanidade”, aponta Faustini.

Houve, portanto, uma preocupação em não retratá-los de modo maniqueísta. “A caricatura é tão evidente quando os personagens ocupam posições extremadas que fica mais fácil explicitá-la e desconstruí-la. Talvez seja mais perigoso lidar com personagens menos delineados porque podem dar ao autor, ao diretor e aos atores a falsa impressão de que são matizados e complexos, quando somente representam o clichê de matizes e complexidades”, sublinha Soares.

Faustini também tomou cuidado para não conduzir um espetáculo panfletário. Assume que não possui uma visão fechada em relação aos conflitos que vêm mobilizando o país. “Estamos diante da classe média ampliada, que se refere a quem tem voz e não apenas bem estar. Essa classe faz exigências, mas não traz propriamente um projeto. De qualquer maneira, existe um desejo de participação que ainda não sabemos ler. Eu sou otimista. Não acho que a situação seja de caos”, opina Faustini.

Os atores Márcio Vito, Ian Capillé e Valquíria Oliveira

Soares entrelaça diferentes planos em Entrevista com vândalo, peça centrada na determinação de uma escritora (Valquíria Oliveira) em conceber um texto sobre as manifestações de agora. Para tanto, ela se aproxima de um policial (Márcio Vito) e de um black bloc (Ian Capillé). Coloca-os em cena e, ao mesmo tempo, passa a viver um triângulo amoroso com eles. Para o autor, o maior desafio não foi criar no calor do momento. “Todo texto dramatúrgico é único, difícil e desafiador porque deve alcançar autonomia diante dos fenômenos com os quais dialoga. Não importa se os acontecimentos mobilizadores são ou não próximos. Autonomia é sinônimo de força e singularidade da linguagem cênica. Só depois de conquistada se logra voltar aos fenômenos, iluminando dimensões que a experiência cotidiana, com seus automatismos, ignora ou naturaliza”, afirma Soares.

Tanto para Faustini quanto para Soares, Entrevista com vândalo surge como um trabalho fincado no presente, mas atravessado por ganhos decorrentes da passagem do tempo. No caso de Faustini, marca o seu retorno à direção de espetáculos após um hiato de cerca de dez anos. Já Soares escreve norteado por uma perspectiva histórica. “Sou filho de 1968. Minhas bandeiras são libertárias, mas não tenho mais idade para ser ingênuo. Acredito que a realidade da vida coletiva, sobretudo em escala global, não se resume à contradição entre capital e trabalho, nem será superada pela dialética redentora. Os direitos humanos são o horizonte de minha prática política, estética e intelectual. A luta pelo paraíso social na terra não justifica o desrespeito a um indivíduo. Se o ser humano é fim, não meio, qualquer sonho de mudança política tem de comprometer-se com a qualidade moral do método e realizar, aqui e agora, o princípio projetado nas utopias”, explica. Faustini e Soares já têm um novo projeto em vista: a transposição para o palco de Tudo ou nada, livro de Soares adaptado pelo próprio.

Serviço:
Onde: Espaço Cultural Municipal Sergio Porto (Rua Humaitá, 163, fundos, Rio, tel. 21 2535-3846).
Quando: Quartas e quintas, às 20h. Até 10/7.
Quanto: R$ 10 e R$ 5.

Ficha técnica:
Direção e cenografia: Marcus Vinícius Faustini
Texto: Luiz Eduardo Soares
Com: Márcio Vito, Valquíria Oliveira, Ian Capillé
Iluminação: Lara Cunha e Fernanda Mantovani
Figurinos: Nívea Faso

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C6, em 18/06/2014.

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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