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Crítica

A memoriosa cohabitação do Grupo XIX

23.7.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Claudio Etges

O espetáculo Hygiene, do grupo paulista XIX de Teatro, mostra a higienização urbana que avançou no Brasil, obrigando várias famílias a deixar as suas casas. A peça é ambientada no Brasil da virada do século XIX para o XX, época em que o país estava sendo construído numa velocidade acelerada e recebendo diariamente milhares de imigrantes. Formavam-se habitações, também chamados de cortiços. Assim como na obra do escritor Aluísio Azevedo, o grupo parte dessas habitações – nas quais pessoas diferentes convivem sob o mesmo teto – para discutir a formação da identidade brasileira. Estão presentes na trama o samba, o sincretismo religioso, as lutas operárias, entre outras manifestações socioculturais.

Na encenação o conflito se dá quando os habitantes terão que ser removidos do local. Aqui podemos identificar o Brasil do final do século XIX em paralelo com o país do século XXI. A cultura de limpeza social ainda é muito presente no Brasil. Existe uma tendência de levar para longe tudo o que incomoda, o que é diferente. Há movimentos legítimos que reivindicam lugar dentro da sociedade, como o Movimento dos Sem-Teto, ou até mesmo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Há, portanto, pelo grupo, uma atualização do tema.

A peça estreou em 2005, mas chegou a Porto Alegre somente em 2014, finalizando a 9ª edição do Festival Palco Giratório, em maio. A direção é assinada por Luiz Fernando Marques, que teve aulas com Antônio Araújo (do Teatro da Vertigem) no Centro de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP). Marques e os demais integrantes trouxeram, para dentro do grupo, o processo colaborativo apreendido com Araújo. Estão no elenco atual Janaina Leite [na foto acima], Juliana Sanches, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Tatiana Caltabiano.

Além do pertinente conteúdo, a forma que o grupo encontra para contar essa história torna-a mais interessante. A montagem se utiliza de um conceito de dramaturgia do espaço, abordado pelo diretor de teatro brasileiro e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, André Carreira, e revisto por Evill Rebouça, ator, diretor, dramaturgo, pesquisador e também um dos fundadores da Cia. Artehúmus de Teatro de São Paulo. O espaço atua como discurso do espetáculo, ou seja, a carga semântica do local está entre as lacunas da encenação. Não há como o espectador não impregnar-se da memória do lugar. No caso, a escolha do espaço não poderia ser melhor. O grupo encenou a peça na Vila Flores. Trata-se de um complexo habitacional em desuso, localizado no bairro Floresta, de Porto Alegre. O empreendimento foi construído nos anos de 1920, tinha seu uso destinado a “casas de aluguel” para pessoas e famílias que vinham habitar o Floresta, em franca expansão industrial nesta época. Ali moravam operários que vinham trabalhar no bairro, bem como imigrantes de diversas etnias.

Portanto, boa parte do texto – que é assinado pelos integrantes do elenco (com exceção de Tatiana Caltabiano) e soma-se a eles Sara Antunes – não está dito em palavras e sim contaminado pela memória do espaço que ainda que não conhecido pelo espectador, este pode imaginá-lo pela arquitetura do ambiente.

Serruya e Juliana contracenam em Porto AlegreSem créditos

Serruya e Juliana contracenam em Porto Alegre

Desde 2001, o grupo vem atuando em propostas que fazem uso da intervenção e exploração de prédios históricos como espaços cênicos e estabelece uma espécie de ressignificação desse ambiente para o público que, muitas vezes, não o reconhecia ou não sabia desse pedaço oculto na cidade em que a obra é apresentada. Inclusive, a partir de 2004 a companhia passa a desenvolver seu projeto de residência artística na vila Maria Zélia, antiga vila operária no bairro do Belém na zona leste de São Paulo.

Em relação aos atores, a interatividade com o espectador é uma importante ferramenta. O público é colocado em cena como agente compositor do espetáculo, como quando acompanha a procissão de casamento ou no momento em que uma das atrizes se torna noiva de um espectador chamando pelo nome e voltando a jogar com ele em outras cenas. Ou seja, há o tempo todo uma tentativa de fazer do espectador um personagem da trama.

O espetáculo, pode-se dizer, foi um dos destaques do festival deste ano. O grupo XIX de Teatro também apresentou na programação as montagens Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo, sua releitura para o clássico Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, e Marcha para Zenturo – este uma parceria com o grupo Espanca!, de Minas Gerais, cabendo a dramaturgia a Grace Passô.

.:. O site do Grupo XIX de Teatro, aqui.

Ficha técnica:
Pesquisa e criação: Grupo XIX de Teatro
Dramaturgia: Janaina Leite, Juliana Sanches, Luiz Fernando
Marques, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Sara Antunes
Direção: Luiz Fernando Marques
Com: Janaina Leite, Juliana Sanches, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Tatiana Caltabiano
Figurinos: Renato Bolelli
Contrarregra: Felipe Cruz

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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