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Crítica

O Jó inscrito na pele de cada um

13.7.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Caldas

A mitologia grega pondera deuses com virtudes e defeitos humanos. Vide a frequência com que os baixam do Olimpo para interagir com os mortais. Numa de suas incursões como autor teatral, Woody Allen clama a Zeus, senhor do raio e do trovão, para salvar um grupo de humanos “agradecidos, mas impotentes”. Na comédia Deus (1975), do cineasta, os protagonistas são um ator e um dramaturgo pelejando para encontrar o melhor fim de uma história transcorrida na Grécia Antiga. Já a peça brasileira O livro de Jó (1995), de Luís Alberto de Abreu, sob premiada atuação de Matheus Nachtergaele no Teatro da Vertigem, a inspiração vem da passagem bíblica em que criador e criatura se confrontam. No enredo, homem fervoroso é exortado à provação acometido pelas chagas e pelo abandono da mulher, transbordando questionamentos.

Esses desígnios celestiais e terrenos estão nuançados nos diálogos bem-humorados e reflexivos de Meu Deus!, texto da israelense Anat Gov (1953-2012) que ganhou produção inédita no país em temporada no Teatro Faap, em São Paulo. O tratamento da tradução, adaptação e versão por diferentes profissionais não trai o essencial da obra estimuladora de uma ascese às avessas por meio de suas provocações. Falas curtas ricocheteiam as tiradas de um encontro hipotético entre Ele e uma das mulheres que vieram ao mundo graças a um naco da costela de Adão, na pele de psicóloga. Deus vai ao divã, ou melhor, ao sofá da casa que também é consultório de Ana. O nome palindrômico decerto tem a ver com circularidade da natureza e da vida conforme os preceitos cristãos.

Como no set terapêutico, o que se diz e o como se ouve denotam susceptibilidades. Deus expõe sua crise de comando. Anda fragilizado, sem ânimo para acudir a humanidade na dor e na alegria seculares. As primeiras impressões trocadas entre o novo paciente e a devota da razão em Freud são elementares e geram a expectativa do que virá depois dos chistes. Afinal, não é sempre que a onipresente deixa entrever seus pontos fracos.

As interpretações de Dan Stulbach, no papel-título, e de Irene Ravache, como a psicóloga, condizem com a cadência espirituosa do percurso dramático. A autora dosa reflexões filosóficas e dessacralizações, sempre à luz da ironia e da autoconsciência. Uma vez estabelecida a transferência – Deus faz às vezes de psicólogo e ela, de paciente -, a peça dá um salto de composição e conteúdo, fisgando o espectador em outras esferas, a começar pela identificação, o tal efeito da imagem e semelhança. Ana relata um episódio-limite enfrentado aos 40 anos, deflagrador de ressignificações que o encontro surreal com o ente dito infinito e eterno lhe desata de vez alguns nós.

Irene e Stulbach surgem entrosados num espetáculo repleto de cenas abertas, à la auditório televisivo, universo de que são íntimos e nem por isso sucumbem. A sutileza os rege como no detalhe de Stulbach passar a apresentação toda com os pés descalços. O desnudamento de base do ser divino em seu figurino social contrasta a cenografia de arquitetura ostensiva (por Antonio Ferreira Junior), com um jardim recuado no centro e justamente excêntrico à história e ao tom impressos pela direção de Elias Andreato e pelas atuações. O resultado é um firmamento despido de aura.

Na imbricação texto e dupla, Andreato orienta Irene e Stulbach como quem comunga o ofício em eixos sacramentais, como a enunciação e a clareza de raciocínio. Por isso destoa, sob as mesmas mãos do diretor, o trabalho de Pedro Carvalho como o jovem musicista filho de Ana, aquém das sutilezas do papel de participações breves, mas cruciais para as correlações de fundo que vão emergir. Essa de fato não é uma peça fácil. Sua superfície é mais transparente do que se vê. Apesar do universo que toca, Anat Gov não vaticina dogmas. Lança olhar sagaz para a crise do ser contemporâneo e seu ambiente niilista.

.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu & Fim de Semana, p. 29, em 4/7/2014.

.:. A reportagem de estreia de Meu Deus!, por Maria Eugênia de Menezes, aqui.

Serviço:
Onde: Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo, tel. 11 3662-7233).
Quando: Sexta, às 21h30; sábado, às 19h e 21h30; domingo, às 18h. Até 27/7.
Quanto: R$ 60 a R$ 80.

Ficha técnica:
Texto: Anat Gov
Adaptação: Jorge Schussheim
Tradução: Eloísa Canton
Versão: Célia Regina Forte
Direção: Elias Andreato
Com: Irene Rache, Dan Stulbach e Paulo Carvalho
Cenário: Antonio Junior
Figurino: Fause Haten
Iluminação: Wagner Freire
Trilha sonora: Jonatan Harold
Assessoria de imprensa: Daniela Bustos e Beth Gallo – Morente Forte Comunicações
Programação visual: Vicka Suarez
Fotos: João Caldas
Assistente de direção: Andréa Bassitt
Assistente de iluminação: Alessandra Marques
Assistente de figurino: Gabriela Marumoto
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Assessoria contábil: Marina Morente
Assistente de produção: Celso Dornellas e Thaís Peres
Administração: Magali Morente
Produção executiva: Kátia Placiano
Coordenação de projetos: Egberto Simões
Produtoras: Selma Morente e Célia Forte
Realização: Morente Forte Produções Teatrais

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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