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Crítica

A reimaginação no poder

10.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

A tarefa da crítica no teatro costuma ser empobrecida quando toma o texto em si como plataforma. A arte de nosso tempo é lida pelo texto da encenação, a totalidade da dança dos corpos e demais signos em cena. Na dramaturgia de Grace Passô, e particularmente em Congresso internacional do medo (2008), peça da safra colaborativa com o Grupo Espanca! e escalada para a 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a matéria da palavra converte-se ela mesma em fulcro. Impossível mergulhar no oceano simbólico sem ser capturado pelos estalos verbais ou pelas “correspondências sensíveis” de que falava Baudelaire. A natureza da tradução, ofício deveras literário, ganha status de forma e conteúdo nesse espetáculo de poderes encantatórios (a transubstanciação está lá) pelas ideias e imagens que instaura.

Traduzir e criar são verbos univitelinos. O poeta e tradutor concretista Haroldo de Campos pescava isso como transcriações, transluminuras ou reimaginações, para lançar alguns dos neologismos que cunhava. O caráter expositivo da reunião de especialistas arquitetada por Passô faz da oralidade o principal veículo das línguas e das culturas em sua maioria inventadas, ou melhor, reinventadas. Em vez do temor inscrito sob ângulos geopolíticos e afins, como sugere o simulacro institucional, as abordagens dominantes versam sobre as condições subjetivas da vida e da morte, esta não como oposição àquela, mas sua essência.

Em atuação de Gláucia Vandeveld, a figura da Tradutora serve de dínamo. Sentada na cadeira de rodas e sugerindo ar combalido de quem milita há anos na profissão, ela devolve ao público, às vezes com alguma dissimulação, aquilo que os representantes estrangeiros dizem para a audiência ou uns aos outros. A peça deriva dessas triangulações. Uma vez que traduzir implica um bocado de traição e parte dos que estão na mesa transita o português, o espectador acaba incitado a apurar sua escuta para preencher as lacunas e atar as complementariedades e atritos semânticos que a dramaturgia pede.

Nesse território fértil da linguagem, da vivificação da palavra, a presença de um índio de uma nação imaginária, trazendo sua irmã a tiracolo, introduz dados da realidade e da identidade brasileiras nessa operação. O cocar e o tênis do homem originário, bem como o canto que a irmã evoca, sintetizam o mal estar de uma civilização desafiada a traduzir a si mesma. No caso da congressista representante de um país inventado, mas que se existisse estaria cravado no Oriente Médio – a burca assim indica –, ela elogio os finais felizes dos contos de fada infantis, independente do medo que possam despertar, e tampouco é estigmatizada pela sua cultura como o noticiário insiste em bombardear.

Importa menos sobre o que todos estão falando e mais as sinestesias construídas ou subvertidas na percepção da Tradutora. Mesmo quando a língua dita não é identificável pairam níveis de entendimento nas entrelinhas desse “fonemol” (lembrando Antunes Filho), para não dizer das outras intencionalidades do gesto, do olhar e do movimento.

Aos atores, o exercício de encontrar analogias e distanciamentos nessa babel dissonante requer estado de atenção redobrado. Todos equilibram bem o ato de comunicar o pensamento neutro embebido em outro idioma. A Tradutora de Vandeveld é um capítulo à parte pela função que lhe cabe e pela atriz demonstrar sobriedade e espanto lapidares.

Neutralidade, digamos, dissolvida na reta final do drama, quando o diz que diz fica em segundo plano e a sintonia universal floresce nos teimosos resquícios de humanidade. Emblemáticas, para tanto, as passagens em que o público capta as ironias sutis e ri dessa bendita estrutura capciosa que a autora e diretora descortina com o Espanca!, grupo de Belo Horizonte pautado pela pesquisa e intertextualidade estilística desde a primeira produção, Por Elise (2004).

O espaço cênico desenhado pelo diretor de arte Renato Bolelli imprime o branco dominante, no piso e no fundo, sugerindo a página vazia do livro a ser escrito. O ambiente do congresso compõe como que um aquário mimetizado do pequeno reservatório redondo de vidro que um dos palestrantes, um estudioso de peixes, traz à mesa. Mesa equivalente a um tronco talhado. Vasos de plantas espalhados e a presença contínua e ruidosa, no melhor sentido, de casal de dançarinos cativos de expressões ondulares ajudam a referenciar a submersão. São satélites do que não vem à tona, o inconsciente que às vezes sangra também. Os modos como esse não lugar também saudará a chegada de uma nova vida e a partida de outra condensam a sublimação de uma poética crítica em Congresso internacional do medo.

.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.

.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

Ficha técnica:
Direção: Grace Passô
Dramaturgia: Grace Passô (em processo colaborativo com o grupo)
Com: Alexandre de Sena (Doutor José), Gláucia Vandeveld (Tradutora), Gustavo Bones (Tusgavo Tapbista), Izabel Stewart (Payá), Marcelo Castro (Trumak), Mariana Maioline (Reluma Divarg), Marise Dinis (Dançarina), Sérgio Penna (Dançarino)
Assessoria dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistência de direção: Fernanda Vidigal
Direção de arte: Renato Bolelli
Assistente de cenografia: Viviane Kiritani
Assistente de figurinos: Gilda Quintão
Iluminação: Nadja Naira
Arranjos sonoros: Alexandre de Sena
Música da tribo: Daniel Mendonça
Vídeo: Roberto Andrés e Leandro Araújo – superfície.org
Coreografia: Sérgio Penna
Preparação vocal: Camila Jorge e Mariana Brant
Técnico e operador de luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Pereira
Costureira: Mércia Louzeiro
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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