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Crítica

Narrar e agradar, atos dissonantes

11.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: P. Grosbois

Radicada em Paris desde a década de 1980, onde foi estudar e depois virou professora da École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, a argentina Susana Lastreto Prieto escreve, dirige e atua em Noches lejos de los Andes… o diálogos con mi dentista (2003), espetáculo do coletivo GRRR (Grupo Risos, Raiva e Resistência) em que referenda a experiência no exílio.

Seja voluntário ou forçado, o afastamento da terra natal implica negociação constante entre as perdas e ganhos mensuráveis conforme a biografia de cada um. No caso da artista, a meditação sobre a nostalgia e a solidão vem embalada por elementos sutis do clown, despido de nariz vermelho ou rosto branco, e do narrador de histórias, procedimento decisivo no trabalho da comediante que incorpora brevíssimas janelas pantomímicas e é talentosa em dotar objetos de formas animadas, especialmente a pequena luminária de mesa que carrega consigo durante boa parte do tempo, focando o próprio rosto ou transfigurando o aparelho em rosto do amante.

O roteiro pontua momentos de exaltação do lirismo e do reconhecimento da dor e da tristeza à maneira combinatória dos filmes de Federico Fellini, citado em cena, para quem as fronteiras da memória, do sonho, da fantasia e do desejo são cambiantes.

Um achado dramatúrgico é a situação escolhida como ponto de partida e de chegada do enredo: a cadeira de seu dentista. O diálogo é entremeado pelo relato do cotidiano parisiense, as comparações de atitudes e comportamentos perceptíveis como migrante, mas relativizados enquanto turista. Na condição de americanos ao sul, divisamos o estranhamento em terras europeias, as capacidades e resistências em assimilar ou se adaptar às paisagens geográficas e culturais daqueles povos.

Desenvolve-se também um subtexto de sedução com o homem mais velho que está a tratar o dente enquanto a paciente deita a fala no consultório. Uma daquelas contradições maravilhosas que a literatura latino-americana contorna sem o menor problema. São notáveis os relatos de quanto avista o compatriota Julio Cortázar na plateia de um dos espetáculos em que se apresentava ou da verdadeira saga para driblar um policial que a aborda na plataforma do metrô tentando conferir o bilhete que ela não carregava.

As reminiscências da infância ganham relevo em algumas passagens, sobretudo na figura do pai que talvez esteja projetada no dentista. A narrativa é intercalada pela bandoneonista Annabel de Courson, que toca o instrumento típico dos conjuntos de tango e ainda explora outras sonoridades percussivas para compor atmosferas do que é contado. Ela chega a contracenar ilustrando o gato da narradora por meio de seu chapéu devidamente adornado com luzinhas, as “orelhas”.

O espírito lúdico da obra – aqui adulto não sabota sua criança – suplanta o campo existencialista e dá margem para pensar no transbordamento da estrutura épica quando a mediação é concessiva.

Prieto inicia a apresentação anulando o vão entre palco e plateia. Põe-se ao lado do espectador e mira o palco “vazio”, o quadrado ao centro demarcado pelo linóleo, os focos de luz, alguns objetos. É lá que irá habitar daqui a pouco. Traços brechtianos logo são despotencializados pela fixação da empatia, essa virtude movediça. Em certos momentos da apresentação a narradora excede ao tentar agradar, ter o espectador por perto, a ponto de citar o célebre jogador de futebol que não está no roteiro, mas conviria à plateia predominantemente brasileira no encerramento da 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro, domingo, na sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo.

Esse impulso recorrente desconcentra o ritmo e deprecia aquilo que a narradora ergue por si só. Uma boa história a ser contada com singeleza e eficiência descarrila quando relega os próprios códigos no afã de conquistar o interlocutor. Incoerência diante da memória pessoal e da bagagem artística revisitadas com criatividade, fundindo ou confundindo ficções e realidades. Donde se intui que a busca pelo afago alheio coloca o ato de narrar em perigo. Sua beleza, quem sabe, mora no distanciamento inconciliável.

.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.

.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

Ficha técnica:
Texto e interpretação: Susana Lostreto Prieto
Bandoneón: Annabel de Courson
Texto da canção: Hugo Paviot

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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