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Crítica

Nas dobras de Plínio Marcos

26.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Nascimento

O teatro de pesquisa tem na obra de Plínio Marcos o chamamento à apropriação de suas bases realistas, a fala batucada, os fotogramas duros e poéticos extraídos das precariedades material e humana na representação dos desvalidos, dos marginalizados. Abismos sociais resistentes há décadas com igual urgência que, de tão gritante, podem turvar o potencial inventivo a ser fundado em cena.

Mundaréu cumpre essa transcriação com sublimações formais na expressão corporal e na música, alicerces da relação criativa da brasiliense Dois Tempos Cia. de Teatro com o autor. A companhia é autoconfiante para construir uma terceira via entre a peça O abajur lilás (1969) e o romance Querô, uma reportagem maldita (1976), transposto para o palco logo depois. A diretora convidada Alice Stefânia, professora da UnB, coordena o grupo de pesquisa Poéticas do Corpo. Ou seja, o pensamento e a prática universitários atravessam também o quinteto de atores.

De cara, a ressaltar a interconexão desses mundos tão apartados na vida real: a universidade e a rua, precisamente o imaginário cotidiano boêmio do cais do porto santista refletido nos nichos urbanos de hoje. Plínio é montado com frequência no Distrito Federal, tanto que há outro projeto dedicado a seu universo na programação do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro, Autópsia, fricção de cinco peças, com o Grupo Sutil Ato e direção de Jonathan Andrade. A primeira peça do grupo Teatro Concreto a que assistimos foi Diário do maldito (2006), direção de Francis Wilker, que acolhia o público no ambiente cenográfico de um bar e recortava aspectos multiculturais do Brasil.

Em Mundaréu, a adaptação de Alexandre Ribondi ressuscita no plano da memória a mãe de Jerônimo da Piedade, o Querô, que ficou órfão após Violeta cometer suicídio ingerindo querosene. Assim, Dilma, a prostituta explorada no bordel de O abajur lilás, que diz suportar tanto esculacho do dono do prostíbulo porque tem um filho para criar e credita a ele sua razão de viver, é ela que encarna a mulher que dá à luz o menino e o abandona para sempre. A suicida dando lugar à resignada, difícil atribuição de pesos existenciais.

Helena Miranda, da brasiliense Dois Tempos Cia.

Uma das melhores soluções dessa liberdade adaptativa foi conceber uma cafetina lésbica como a responsável pelo bordel e não um cafetão gay, como na peça original. Dilma tem um caso amoroso com a dona do pedaço que a despreza quando anuncia a gravidez. Esta microcélula da história transcorre em simultaneidade às desventuras de Querô, que reage com a mesma moeda às violências que sofreu, matando, roubando e sendo perseguido e ferido pela polícia, conforme relata a um repórter convertido em narrador. Antes, do lado de fora do edifício teatral, a cena em que o então adolescente mata um colega que o ameaçava com uma arma e fazia blague de sua virilidade já emplacava um prólogo sobre a falta de luz no fim do túnel.

Além da dramaturgia bem executada na bricolagem e nas interfaces espaciais e temporais, o acompanhamento da música ao vivo (percussão, vozes e cordas com Isabella Pina e Mateus Queiroz, sob direção musical do ator Miguel Peixoto) cria uma extensão lírica sofisticada em meio aos recantos escuros da alma e da urbe.

Nas atuações, há um desequilíbrio entre a ação física esquadrinhada para relacionar-se decisivamente com os objetos cênicos modulares (três camas e respectivas armações mutantes) e a incipiente densidade dramática. Alguns momentos pedem mais tônus em virtude das cicatrizes daqueles personagens, porém a juventude dos atores e atrizes ainda não dá margem para apreender tanta dor pelos olhos. Quem mais se aproxima desse traçado é a cafetina e o repórter de um tempo mau, que a tudo espreitam. Projetar a angústia com naturalidade e desde o olho do furacão, como no caso da mãe e do filho bifurcados, é uma meta e tanto.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.

Jordana Mascarenhas e Helena Miranda na adaptação

Ficha técnica:
Textos: Plínio Marcos
Adaptação: Alexandre Ribondi
Direção: Alice Stefânia
Assistente de direção: Fernando Santana
Com: Davi Maia, Helena Miranda, Jordana Mascarenhas, Miguel Peixoto e Thiago Ramos
Direção musical: Miguel Peixoto
Músicos: Isabella Pina, Mateus Queiroz e Miguel Peixoto
Desenho de luz: Abaetê Queiroz
Operação de luz: Ana Luísa Quintas
Cenário e figurino: Guto Viscardi
Produção: Jordana Mascarenhas

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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