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Reportagem

A existência em três tempos segundo Beckett

15.9.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Daniel Seabra

Em cena, três mulheres. Imóveis. Na penumbra. Em três tempos diferentes. A atriz Paula Spinelli fala sobre suas descobertas e surpresas diante de fatos. Juliana Galdino comenta suas dores, medos e fragilidades, e por fim, Nathalia Timberg narra o enfrentamento da morte. “Infância, fase adulta e velhice coexistem no palco”, explica o diretor Roberto Alvim sobre o espetáculo Tríptico Samuel Beckett.

Quase como uma personificação da humanidade, surge no palco uma adaptação livre das três novelas do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) escritas na última década de sua vida e nunca antes encenadas no Brasil: Companhia (1980), Mal visto mal dito (1981) e Para o pior avante (1983). A peça participou do festival Porto Alegre Em Cena, cuja programação segue até o dia 22/9.

Para Alvim, um encontro deste tipo com Beckett é imprescindível para qualquer diretor. “Ele é autor, talvez, da obra mais radical da história do teatro, no sentido de uma redução da narrativa, dos personagens e dos conflitos, ou seja, com o mínimo necessário se atinge o máximo de potência estética”, argumenta ele, que, atualmente, trabalha na montagem do texto Terra de ninguém, de Harold Pinter.

A peça aposta em uma narrativa fragmentada: não há diálogos em cena, tampouco personagens definidos. São três monólogos, nos quais as atrizes ocupam o espaço cênico. “Existe uma contracenação sutil entre elas; os monólogos não são totalmente separados, eles intercalam trechos de um com partes de outro”, explica o diretor. Esses textos, para o diretor, podem ser considerados como um “testamento artístico” do autor. Nele está condensada a visão panorâmica do que Beckett pensava. “Beckett nos mostra que a vida não significa nada, então podemos inventar sentido para ela”, reflete Alvim.

O espetáculo é marcado pela parceria com Nathalia Timberg que, aos 84 anos, encara pela primeira vez um personagem do dramaturgo irlandês. Em 2010, a atriz esteve em Sopro da vida, espetáculo com caráter mais comercial e direção de Naum Alves de Souza. Recentemente, interpretou a personagem Bernarda, da novela global Amor à vida. “É uma relação muito fácil, direta e feliz. Apesar da distância de gerações, o ponto de apoio dela é o mesmo que o meu. Nós dois trabalhamos a partir do texto, ou seja, é a linguagem de cada dramaturgo que conduz a criação”, afirma Alvim, conhecido por defender a singularidade dentro da arte. Ano passado ele esteve por aqui, também no Em Cena, com a montagem Peep classic Ésquilo.

Ao lado de Juliana Galdino, Alvim fundou o Club Noir, grupo experimental de teatro, localizado na efervescente rua Augusta, epicentro cultural de São Paulo. Lá, eles desenvolveram um sistema cênico original que consiste na utilização de pouca luz, minimalismo nos gestos, intensificação no trabalho de voz dos atores tendo como elemento fundamental o texto. “Ninguém no mundo faz o que realizamos atualmente. Produzir uma obra de arte tem a ver com criar procedimentos estéticos singulares. Isso instiga o imaginário de cada espectador a produzir imagens e sensações”, relata Alvim. Para que isso aconteça, conforme o diretor, o público tem que se deixar levar de forma inconsciente nesta experiência.

Para os que dizem que suas peças são parecidas umas com as outras, Alvim rebate: “Se você pensar bem, os quadros de Pollock são similares e, ao mesmo tempo, distintos. Esse sistema cênico com o qual eu sempre trabalho sofre uma série de atravessamentos e influências e se desdobra de maneira distinta, dependendo da dramaturgia que aborda”, completa o diretor.

.:. Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 8/9/2014.

.:. Leia a crítica de Daniel Schenker ao espetáculo, aqui.

Ficha técnica:
Texto: Samuel Beckett
Direção, tradução e adaptação: Roberto Alvim
Elenco: Nathalia Timberg, Juliana Galdino e Paula Spinelli
Trilha sonora original: L.P. Daniel
Cenografia e iluminação: Roberto Alvim
Figurinos: Juliana Galdino
Visagismo: Alex (Salão Pierà)
Assistente de direção: Ricardo Grasson
Cenotécnica: Juliana Fernandes
Técnico de palco: José Renato Forner
Operador de luz: Jota Michilis
Operador de som: Don Correa
Direção de produção: Maria Betania Oliveira e Ricardo Grasson
Produção executiva: Martina Gallarza

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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