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Crítica

Peça peruana ‘Criadero’ gera alteridades do eu

16.9.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Paola Vera

Representante única da produção peruana no Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, Criadero serve-se do formato da autoficção e supera as armadilhas dessa escolha quando envolve o universo feminino próximo dos 40 anos triscando os lugares-comuns da autoajuda. Não é o caso. O conteúdo testemunhal de duas atrizes centra na condição de ser mãe enquanto uma terceira ainda não teve filho, mas congelou os embriões para quem sabe. A dramaturgia e direção de Mariana de Althaus – aliás, ela não veio ao Brasil por conta da gravidez – toma esse material colaborativo pelas mãos e o transforma numa experiência convincente de quem quer contar boas histórias em primeira pessoa e enreda o outro – o espectador – de maneira inspirada.

A despeito de incorporar música tocada e cantada pelas atuadoras, da projeção em vídeo de imagens documentais e das breves evoluções coreográficas, o espetáculo não parece interessado em demarcar revoluções híbridas. Os ruídos são diminutos: quase tudo é acessado em favor da narrativa francamente afetiva.

Alejandra Guerra, Lita Baluarte e Denise Arregui nasceram em berços de classe média, suas famílias viajaram muito, moraram fora do país. Portanto, elas carregam uma visão ampliada do seu lugar no mundo. São atrizes, claro, e contam suas vidas antes e depois da chegada dos filhos, no caso de Guerra e Baluarte, enquanto Arregui relata o patrulhamento em torno da experiência materna que canaliza para os sobrinhos, o trabalho, os estudos.

O trio intercala suas histórias com a cadência que cada momento pede, ora introspectivo ora tempestivo. Revisita as respectivas infância e juventude que decifram muito dos comportamentos e atitudes adquiridas perante o ofício do teatro, além de outras frentes de trabalho e relacionamentos profissionais ou amorosos.

Alejandra Guerra é a que põe mais ênfase na expressão corporal, vigor correspondente à concentração de acontecimentos, como o casamento e o filho que teve vivendo no exterior – agora é mãe solteira. Lita Baluarte rememora a procriação dos três filhos, “uma máquina de parir”, e a doação incondicional à criação deles sem abdicar do trabalho artístico do qual a montagem é a melhor tradução. Denise Arregui (que substitui Sandra Requena da montagem de 2011 e, portanto, também empresta sua biografia ao texto), por sua vez, não rechaça ser mãe e tem jogo de cintura para desviar da pressão daqueles com quem convive, a ponto de deixar em aberto a possibilidade da fecundação in vitro.

Criadero, ou criadouro, adota a perspectiva uterina da existência e a amplia sensivelmente para encontrar abrigo sob a árvore genealógica em meio a alentos e desamparos. Concebe a linha do tempo pregressa e por fazer de cada uma e de cada um. As três histórias não seriam possíveis sem o retrato falado ou projetado do avô, da avó, do pai, da mãe, dos namorados, maridos, filhos e demais coadjuvantes que as tornaram o que são, donas de repertórios suficientemente interessantes para virem à luz.

O projeto artístico oriundo do Centro Cultural de La Pontificia Universidad Católica del Perú (CCPUCP) não desequilibra em afetações, como as questões íntimas poderiam suscitar. Mesmo apresentado num inóspito auditório de uma universidade santista, cuja boca de cena alta gerava distancia abismal diante do público, as atrizes convencem a audiência a embarcar nas cenas da vida condensadas com a propriedade e a complexidade que a linguagem e a memória merecem. Construir alteridades a partir do eu é missão para poucos em cena e a diretora e as atrizes consagram isso.

.:. O jornalista viajou a convite do Sesc SP, organizador do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.

.:. O site do Mirada, aqui.

Ficha técnica:
Dramaturgia, direção artística e direção de vídeo´: Mariana de Althaus
Com: Alejandra Guerra, Denise Arregui e Lita Baluarte
Codireção: Nadine Vallejo
Iluminação: Rodolfo Acosta
Ilustrações: Andrea Lértora
Edição de som e efeitos: Rodolfo Acosta
Assistência de vídeo: Monserrat Gómez de la Torre
Fotografia: Paola Vera

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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