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Artigo

Giramundo do avesso

29.11.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação

As representações de deuses, homens, animais ou seres fantásticos remontam aos primórdios da humanidade. Arqueólogos estimam que desde o terceiro milênio antes de Cristo, por exemplo, povos do Egito ou da Mesopotâmia já recorriam a sombras, pinturas ou entalhes nas rochas e cavernas para demarcar rituais e festejos, profanos ou sagrados, em celebração às forças da natureza: terra, fogo, água e ar.

Num salto para este século 21 as formas animadas, ou simplesmente formas não humanas mantêm a energia renovada apesar de tão ou mais antigas que a expressão corporal propriamente dita. Os recursos da máscara, da silhueta, do objeto e do boneco evoluíram ao longo do tempo em associação estreita com as reinações do teatro, da dança, do circo ou da ópera, multiplicando as possibilidades de criação.

Uma síntese extraordinária dessa ancestralidade alinhada ao imaginário contemporâneo brota justamente do teatro de bonecos que o Grupo Giramundo abraça há 44 anos e cuja memória é esquadrinhada na Ocupação em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, entre 29/11 e 11/1.

A mostra abarca mais de 90 bonecos, além de desenhos e projetos do cofundador da companhia, Álvaro Apocalypse (1937-2003), proporcionando um panorama conceitual e prático do processo criativo, além de abarcar apresentações de espetáculos do repertório.

O público de todas as idades tem a chance de conhecer de perto bastidores de algumas das 36 obras desse coletivo empenhado desde 1970 na pesquisa de novas formas e técnicas de construção de títeres e marionetes levados à cena ou, mais recentemente, ao alcance dos suportes audiovisuais e digitais.

Títeres, marionetes, fantoches, mamulengos ou bonecos são variações de gêneros universais de figuras dramáticas construídas a partir de materiais como cartolina, papel marché, madeira, policarbonato, resina ou isopor, entre outros, sendo ainda modeladas por espuma, pano ou couro, para citar algumas possibilidades de acabamento. Resultam articuláveis por meio de fios e varas conduzidas pelas mãos de atores-manipuladores que podem despontar neutros ou visíveis em cena, fundido em carne e osso ao corpo outrora inanimado.

O sopro vital dessas figuras não vinga sem sua razão de ser e estar no mundo. Afinal, o boneco não é um “ser humano em miniatura”, como pondera o pesquisador polonês Enno Podehl. A diferença é que tem “vida própria” concebida por aquele que o desenha, o talha, o adorna, o veste e lhe firma a transmissão do brilho no olhar. Ou seja, é preciso estruturá-lo material e espiritualmente em pensamento, filosofia e perspectiva humanista, mesmo quando imerso na fábula em que os animais são protagonistas.

Essa percepção fica clara na trajetória do Giramundo desde o seu nascimento em pleno ano em que o Brasil foi tricampeão mundial de futebol na Copa do México.

O branco onipresente nos 12 quadros de ‘Giz’ (1988)

Por enquanto, convém rebobinar a década de 1940 e espiar, em preto e branco, a infância de pés descalços de Álvaro Apocalypse em sua Ouro Fino natal, no sul de Minas Gerais. O menino pisou quintal de terra batida, conheceu açude, mergulhou em rio, aprendeu a pescar e a criar galinhas. Sempre observado pelas montanhas.

Quando adulto, o mestre costumava lembrar que os seus irmãos brincavam de imaginar e materializar uma cidade povoada só por brinquedos e bonecos, lúdico embrião do ofício. Enquanto aqueles cresceram, Apocalypse continuou brincando, por assim dizer, até os 66 anos, mesmo quando investido de outros papeis profissionais como pintor, ilustrador, gravador, desenhista, diretor de teatro, cenógrafo, professor, museólogo e publicitário.

Formado pelo curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, a lendária Escola Guignard, o cofundador do Giramundo certamente foi influenciado pelo liberalismo didático do educador e pintor modernista Alberto da Veiga Guignard (1896-1962).

Apocalypse acabou trabalhando como professor de desenho na mesma instituição pública. Foi lá que conheceu a sua mulher, Terezinha Veloso (1936-2003), também artista plástica e docente no local. Em 1970, eles iniciaram uma parceria artística com a aluna Maria do Carmo Vivacqua Martins, a Madu. O trio bolou apresentações cênicas informais para crianças, familiares e amigos ocupando a residência de campo do casal em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde faziam as vezes de um ateliê.

Marionetes rústicas, improvisadas sob a técnica de bastão (leia-se cabo de vassoura) e modeladas em papel colado, ou “papier collé”, encantaram a audiência particular com aquela que foi considerada uma inventiva e carismática versão de A bela adormecida.

As sessões domésticas do conto de fadas deram o que falar e logo despertaram a atenção do diretor do Teatro Marília, Júlio Varella, agitador cultural que convidou os então amadores a cumprir temporada, em março de 1971, no palco do centro de Belo Horizonte empenhado na programação para crianças. Bingo.

Os fundadores Terezinha, Apocalypse e Madu

No ano seguinte, o Giramundo ampliou sensivelmente sua bagagem ao participar como convidado do 1º Festival Mundial de Teatro de Marionetes transcorrido no município de Charleville-Mézière, na França. Conheceu o grau de sofisticação nos procedimentos criativos das produções europeias – o apuro nas concepções de luz, cenografia, som e figurinos, elementos jamais reducionistas.

Um dos trabalhos lapidares desse tipo de integração total foi a ópera El retablo de Maese Pedro, do compositor espanhol Manuel de Falla (1876-1946), que entrecruza citações folclóricas e trechos do romance Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Álvaro Apocalypse topou o convite do maestro Sérgio Magnani (1914-2001) para capitanear orquestra, cantores e bonecos. Estes iriam representar apenas os mouros e cristãos, mas os personagens dos cantores também foram convertidos em bonecos de tamanho natural inspirados no teatro japonês bunraku , que usa a manipulação direta por três pessoas.

A montagem estreou na edição de 1976 do Festival de Inverno de Ouro Preto e a passagem pelo Rio de Janeiro, no ano seguinte, projetou nacionalmente as peripécias e rigores dos artistas capazes de trazer à luz “uma pequena joia”, no dizer do crítico Yan Michalski (1932-1990), admirado pela “prova” de que o teatro de bonecos podia transcender o público infantil e fisgar o adulto com igual respeito à inteligência mútua.

Publicada no extinto Jornal do Brasil, a análise de Michalski constituiu documento de flagrante transição para o grupo e por isso merece reprodução de um fragmento:

“Na roupagem que o grupo lhe deu, a pequena ópera de Manuel de Falla é antes de mais nada obra de artistas plásticos, adotando como ponto de partida uma imagem realista da figura humana, mas submetendo-a a uma estilização intensamente expressiva e poética. E chegou-se a um resultado fascinante em termos de criação visual: a cor, a forma, a expressão facial, a valorização através da luz e do movimento juntam-se harmonicamente para fazer surgir em cena uma emoção estética em estado puro. Por outro lado, a qualidade técnica da movimentação chega a ser impressionante. Os bonecos são dotados de uma agilidade e de uma capacidade de executar com naturalidade e precisão movimentos complexos que lhes conferem um poder de convicção profundamente humano.”

Consciências histórica, política e cultural

Abriu-se assim uma linha de interpretação da cultura brasileira. A ambição pela forma atraiu a ambição pelo conteúdo. Apocalypse assinou a recriação cênica do poema narrativo Cobra Norato (1979), do modernista gaúcho Raul Bopp (1898-1984), um dos espetáculos mais premiados na história do grupo, contemplado com as distinções nacionais Mambembe, Molière e Associação Paulista de Críticos de Arte, APCA.

Segundo a mitologia dos povos indígenas do Pará, o personagem-título é um rapaz encantado em uma cobra grande que habita o fundo do rio e à noite vira gente novamente. No texto, o herói mata a Cobra Norato, veste o couro do animal e ruma para o mundo amazônico em busca da filha de uma rainha com quem deseja se casar. Na adaptação cênica, Norato é o próprio poeta que deixa a floresta e se dirige para Belém, da selva para a dita civilização.

Cena do antológico ‘Cobra Norato’ (1979)

A consciência histórica do Giramundo foi apreciada em produções como O guarani (1986), de Carlos Gomes, romance lido na chave do choque entre índios e colonizadores; Tiradentes, uma história de títeres e marionetes (1992), sobre a Inconfidência Mineira e sob o marco dos 500 anos do chamado descobrimento da América; e Orixás (2001), igualmente concebida por Apocalypse, em que o diretor se debruça sobre os aspectos místicos da cultura africana, amparado pela religiosidade do candomblé e pela ótica do fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro Pierre Verger (1902-1996) em saudação a uma espécie de panteão de deuses da cultura brasileira análogo ao da cultura grega.

O pensamento crítico nunca afrouxou a investigação estética, vide montagens inspiradoras como As relações naturais (1983), peça do poeta e escritor gaúcho Qorpo-Santo (1829-1883) em que a deformação de caráter era extensiva à deformidade física dos personagens; e Giz (1988), definida por Apocalypse como uma bela e frágil história que podia deixar de existir com apenas um sopro, espirro ou trapo: doze quadros independentes em que a cor branca se fazia onipresente e o ator-manipulador aparecia personificado no palco pela primeira vez de corpo inteiro.

Bem, o leitor destas linhas já se deu conta da impossibilidade de condensar em pouco espaço (e tempo) a incrível jornada de singularidades que o Grupo Giramundo vem cumprindo nas artes cênicas nacional e internacional, formando e instigando gerações. Não faltariam capítulos sedutores a serem prospectados nesta biografia de laços consanguíneos e fraternais.

Como a estratégia de reeditar montagens do repertório e se permitir os jogos de armar no baú da memória. A facilidade para se apropriar da música nos infinitos universos erudito, instrumental, pop e rock, cooptando para a arte dos bonecos óperas e bandas como Pato Fu e Skank. As fases da morada (sete anos na casa particular de Lagoa Santa, 23 anos num anexo da Escola de Belas Artes da capital mineira em convênio com a UFMG expirado subitamente e, por fim, os recentes 14 anos da sede do bairro Floresta que impulsionou o grupo à independência, à reinvenção e à consequente institucionalização).

Atualmente, a diretoria composta por Ulisses Tavares, Marcos Malafaia e Beatriz Apocalypse (filha) – justamente os curadores da Ocupação – catalisa outros 22 integrantes cúmplices nos processos criativos e nas atuações, inclusive dedicados às atividades do museu fundado em 2001 (acervo com cerca de 1.200 bonecos) e da escola consolidada em 2004 para promover oficinas, sobretudo destinadas a crianças e adolescentes ou mesmo a estudantes e profissionais afins que compartilham práticas de confecção, manipulação e modelagem. O teatro, o museu, a escola e até um estúdio de animação cohabitam a sede, centro de referência em sentidos físico e simbólico.

‘Pedro e o lobo’ é apresentado na Ocupação

No documentário Giramundo: uma história de títeres e marionetes, Madu, terceiro vértice cofundador, afirmou que ela e o casal de bonequeiros entendiam a criação de cada espetáculo “como se fosse um quadro em movimento”. Declaração sincrônica com o que Apocalypse discorreu, num futuro distante, sobre o impulso primitivo de fazer animação, trabalhar com o audiovisual fotografando bonecos para montar uma sequencia quadro a quadro. Contudo, e felizmente, no caso, eram precárias as condições de produção em vídeo na virada dos anos 1960 para os 1970, diferente da era digital que atravessamos, quando qualquer portador de celular pode cometer seus curtas ou microfilmes literais.

Apocalypse e Madu foram visionários a seu modo. Afinal, houve uma mudança de milênio no meio do caminho, margem para metamorfoses e simbioses. A ideia de grupo de teatro norteadora das ações do Giramundo no século 20 foi transfigurada nestes primeiros anos do século 21.

Os artistas despertaram vocações para a multiplicidade de aspectos que gravitam a arte do boneco em campo expandido. Como a incorporação da cinética (ramo da física que trata da ação das forças nas mudanças de movimento dos corpos), do design, da robótica, dos dispositivos multimídia, etc. A maturação artesanal fez com que livros, vídeos, brinquedos e outros produtos desdobrassem em plataforma industrial. A técnica stop-motion que passava pela cabeça do jovem Apocalypse – de fotografar objetos e projetá-los a 24 fotogramas por segundo, dando a ilusão de movimento – tornou-se uma realidade. E tridimensional.

No princípio era o desenho…

Dois aspectos soam inovadores na abordagem da retrospectiva do grupo na Ocupação Giramundo. Além do caráter escultórico de cada peça, a qualidade inerente em termos de plasticidade, volume e relevo, os bonecos podem ser apreciados em movimento. Os manipuladores exibem trechos de alguns espetáculos num cenário circular, em determinados horários, permitindo ambientá-los conforme a cenografia, o desenho de luz e a sonoridade originais. O espaço expositivo, portanto, converte-se ele mesmo em organismo vivo, sensorial.

Aliás, está reservado um cantinho focado no processo construtivo. Um estande em que o público leigo ou iniciado pode conversar com os profissionais do grupo e se inteirar das especificidades no desenvolvimento do boneco por meio de oficinas curtas.

O segundo ponto é a ênfase no aspecto técnico central no processo de construção do boneco e, por conseguinte, do espetáculo: o desenho como ferramenta de estudo e de criação. “Recuperamos parte dos desenhos técnicos, esboços e projetos da nossa história, principalmente do acervo exposto. Isso permite ao visitante entender a relação da cena com um pensamento, com um planejamento”, explica um dos diretores do grupo mineiro, Marcos Malafaia, membro há 27 anos, onde aprendeu a manipular, construir, dirigir, restaurar, além de carregar caixa, montar luz, enfim, fiel à perspectiva pedagógica renascentistas por meio da qual, acredita-se, todos devem aprender de tudo um pouco.

Trazer à tona o desenho como fundamento é reforçar a ideia da coxia, de acessar o palco por dentro. “Como se a gente virasse o Giramundo do avesso, tal qual o gomo da mexerica”, ilustra Malafaia. Espectadores de vários cantos do Brasil conhecem os bonecos do grupo, mas nunca tiveram contato efetivo com os desenhos, a um só tempo o raciocínio e o coração cênico do que é transformado, simulado ou revelado em cada história.

.:. Íntegra do artigo editado para o programa da Ocupação Giramundo no Itaú Cultural.

.:. A programação completa, aqui.

.:. O site do Grupo Giramundo, aqui.

Serviço:
Ocupação Giramundo
Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, Estação Brigadeiro do Metrô, São Paulo, tel. 11 2168-1776/1777).
Quando: Terça a sexta, das 9h às 20h; sábado, domingo e feriado, das 11h às 20h. De 29/11 a 11/1.
Quanto: grátis

A cultura africana expressada em ‘Orixás’ (2001)

Fontes de referência:

Álvaro Apocalypse Maître des Marionnettes. Direção de Ricardo Malafaia e Rogerio Sarmento. Documentário, coprodução franco-brasileira, 2005.

A poesia dos bonecos na Tijuca. Yan Michalski, Jornal do Brasil, Caderno B, p. 2, 30/4/1977.

Giramundo: uma história de títeres e marionetes. Direção de Mariana Tavares. Documentário, realização e produção C/Arte Projetos Culturais, Belo Horizonte, 2001.

Giramundo: Memórias de um teatro de bonecos. Marcos Malafaia. Revista Móin-Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 2, volume 2, 2006.

História mundial do teatro. Margot Berthold. Editora Perspectiva, São Paulo, 2000, p. 1.

O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. Ana Maria Amaral. Editora Senac e Edusp, São Paulo, 2002, p. 79 (citação de Enno Podehl).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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