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Reportagem

A vida é um mal-entendido

2.12.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Adriana Marchiori

Uma mãe poderia não reconhecer seu filho? O franco-argelino Albert Camus (1913-1960) – ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1957 – é o autor da peça O mal entendido, cuja primeira montagem ocorreu em 1944. Exatamente 70 anos depois, seu texto tem ressonância na vida contemporânea. Na história, um homem volta a seu país de origem, depois de viver mais de 20 anos em terras estrangeiras. Sua mãe e sua irmã, que trabalham em uma hospedaria, não o reconhecem. Ele aluga um quarto para passar uma noite na esperança de que elas possam vir a identificá-lo, e em consequência de um mal-entendido, uma tragédia ocorre.

Inédito em Porto Alegre, o espetáculo foi contemplado pelo Prêmio de Incentivo à Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena e estreia amanhã [28/11], às 21h, no Teatro de Arena. A direção é assinada por dois diretores bem conhecidos na cena atual do Estado, Gilberto Fonseca e Daniel Colin. “Vivemos em uma era onde, apesar de tantas facilidades, não nos comunicamos. Falo daquela comunicação reveladora, sincera, olho no olho. Usamos máscaras, enganamos, deixamos de ser quem somos em prol de um personagem, de uma ideia. O espetáculo em muito dialoga com essa incomunicabilidade”, conta Gilberto Fonseca, também idealizador do projeto.

A encenação mostra que a vida é um mal-entendido, trágica e absurda. Com requintes de violência, a peça flerta com o teatro do absurdo e aborda a necessidade do fortalecimento da identidade e da comunicação. Na época, só se manteve em cartaz durante quarenta apresentações. O próprio Camus não nutria grandes paixões por esta obra. No entanto, para Fonseca, é possível, através deste texto, “enxergar o escritor em toda a sua essência”. Para ele, “Camus está ali, com essa abordagem existencialista, esse pessimismo em relação às escolhas que a humanidade toma, além do viés religioso, já que ele era uma pessoa que dava sempre um jeito de cutucar a fé dos outros”, comenta.

Apesar de a dramaturgia ser assinada por Daniel Colin a partir da obra de Albert Camus, as alterações feitas no texto são em sua estrutura, propondo mudanças de ordem dos acontecimentos. “Foi mais uma adaptação do texto, tem cenas que nós costuramos e transformamos em ações, e não necessariamente foi criado um texto específico”, diz Colin.

Se Fonseca vem de uma formação em letras e no teatro trabalhou com a comédia e a farsa, Colin aposta na performance e em um viés mais contemporâneo. Este dueto dá o tom para o bom desenvolvimento do espetáculo – que pode ser acompanhado por alguns espectadores em duas sessões de pré-estreia.

Colin vem ao longo de suas montagens abordando a questão na incomunicabilidade como na montagem IntenCidade 1ª: voar, até o seu mais recente, o solo Viral. Por sua vez, Fonseca atua como professor da disciplina de comunicação na Ftec Porto Alegre. “Através das aulas e dos trabalhos propostos aos alunos, percebi como é difícil para eles se comunicarem. Principalmente com aqueles que são próximos fisicamente. A grande maioria prefere utilizar de uma comunicação virtual, de um avatar, e muitos assumem que não se apresentam nesse mundo virtual de fato como são”, reafirma ele.

Atores do coletivo Teatro de Areia na peça de Camus

Além dos diretores, a atuação também é de peso. No papel do filho que retorna, está Elison Couto; a mãe é representada por Gabriela Greco e a irmã, por Fernanda Petit. O elenco se completa com Patrícia Maciel, como a mulher que volta para saber notícias do marido, e com um personagem misterioso da trama, interpretado por Pedro Nambuco, que auxilia na hospedaria. Eles formam o grupo intitulado Teatro de Areia – criado especialmente para esta montagem.

Vale ressaltar o cenário assinado por Marco Fronckowiak e Rodrigo Souto Lopes, que transforma o espaço do Arena ora em estaleiro, ora em rio. A iluminação é de Carlos Azevedo dando o tom sombrio que o espetáculo pede, e os figurinos de Antonio Rabadan, que trazem elementos de época e contemporâneos. Já a trilha sonora, que reforça o clima das cenas de violência e de suspense, é assinada por Beto Chedid.

.:. Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 27/11/2014.

Serviço:
Onde: Teatro de Arena (Avenida Borges de Medeiros, 835, Centro, Porto Alegre, tel. 51 3226-0242)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h. Até 14/12.
Quanto: grátis (sexta) e R$ 20 (sábado e domingo)

Ficha técnica:
Texto: Albert Camus
Dramaturgia: Daniel Colin
Direção: Gilberto Fonseca e Daniel Colin
Atuação: Fernanda Petit, Gabriela Greco, Elison Couto, Patricia Maciel e Pedro Nambuco
Iluminação: Carlos Azevedo
Trilha sonora: Beto Chedid
Figurinos: Antonio Rabadan
Cenário: Marco Fronckowiak e Rodrigo Souto Lopes
Registro fotográfico: Jorge Scherer e Adriana Marchiori
Produção: Gilberto Fonseca e Patrícia Maciel

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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