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Artigo

Das convicções estéticas

17.12.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cacá Bernardes

O expressivo crescimento da produção de teatro de grupo no país não se traduz apenas por meio de dados estatísticos. A propensão poética pode ser aferida tanto quanto a consciência crítica comumente associada a projetos artísticos dessa natureza. Na experiência do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o fundamento da pesquisa talhado em lei salvaguarda o caráter da obra em processo. Um exemplo sui generis de quando os códigos jurídicos radicam a liberdade criativa nos desígnios da arte do tempo, contornando a fixação pelo resultado e abraçando riscos e responsabilidades de percurso.

As anotações a seguir sobre o impacto estético nos primeiros doze anos da Lei de Fomento não citam espetáculos e respectivos criadores filiados a tais ou quais tendências. Diante da pletora de sistemas continuados em que a valorização do processo é intrínseca, preferimos vasculhar a memória de espectador para compor “nosso diagrama do espaço da subjetividade”, segundo Cecilia Almeida Salles [1].

Para início de conversa, um recuo pré-lei. Aqueles ajuntamentos culminantes nos manifestos do Arte contra a Barbárie em espaços, nas ruas e na Câmara Municipal como que anteviam a recorrência coral entre os contemplados a cada edição. A luta dos artistas por políticas públicas, o corpo a corpo nas plenárias, a resistência para que a instância cidadã da cultura não fosse sabotada por governo de turno, tais imagens plasmaram em mutirões, cortejos e multidões.

O coro foi redivivo em espetáculos em que a utopia contracultural dos anos 1970 e a comunitária da década de 1980 (mutirões por moradia ou ocupações de terras improdutivas que ainda reverberam na pauta dos sem-teto e dos sem-terra) inspiraram imersões por galpões, terrenos baldios, praças, quarteirões e outros lugares não teatrais.

Chamado à contracena participativa, o espectador deslocou-se da relação passiva para pisar territorialidades ficcionais instauradas no cotidiano e por vezes munidas de significações histórico-sociais. Uma relação que não o toma pelas mãos, paternal. Antes, lhe propõe frestas para interagir com autonomia. O respeito à inteligência alheia, a indiferença de classes ou de linhas divisórias entre bairros nobres ou periféricos circunscreveram dignidade mútua: o artista e o público enquanto sujeitos pensantes, reflexivos, sensibilizados pelas alteridades encontradas.

Uma geração de crianças e adolescentes cresceu vendo teatro de pesquisa. Teve inoculada a noção de que o ofício da atuação não é reduzido apenas ao paradigma que chega a sua casa através da televisão ou do DVD. Ou ainda quando vai ao cinema assistir a um blockbuster. Foi dissolvido um bocado da pecha do teatro condicionado somente ao edifício tradicional e àquela gente fina e bem-vestida. A meninada de outrora constitui parte significativa da audiência adulta que acompanha os grupos nos pontos cardeais da cidade, nos extremos ou nas centralidades dos olhos de quem lê sob a ótica da geopolítica cultural da Lei de Fomento. Uma assertiva freiriana, se quisermos, de como a leitura e a escrita, a prática e a teoria, o convívio e a elaboração incidem na reflexão crítica “sobre o profundo significado da linguagem”.[2]

O teatro de rua paulistano absorveu procedimentos da performance e da intervenção afeitos às arte plásticas. Grupos forjados pelas tradições, o flerte consistente e libertário com o circo ou com a comédia popular modularam sensivelmente os seus processos criativos sem abrir mão dessas bases. Para tanto, estabeleceram movimento de afirmação dentro da categoria com o objetivo de minorar resquícios de menosprezo por parte de quem ainda encara o teatro de rua como “arte menor”, visão equivocada e retrógrada.

Como mão dupla, coletivos que até então não haviam experimentado esse universo se permitiram migrar do palco ou dos espaços fechados, evoluindo sua percepção das potencialidades das artes cênicas ao ar livre na captura e construção de imaginários no espaço urbano.

A ocupação de espaços não convencionais, projetada na década de 1990, incorporou diferentes estratégias ao modo de investigação em site specific. Narrativas itinerárias levaram o público a deambular a pé, guiado por escuta individual em MP3. Ou a embarcar num ônibus e ter a possibilidade de ser fisgado pelo teatro a bordo, cabendo aos atuadores construir presenças ao lado de usuários reais convidados a abrir parênteses no trajeto até a casa, o trabalho, a escola. O ônibus aparece ainda convertido em cenário móvel, com o espectador enredado por uma história enquanto a vida como ela é passa pela janela; ou adaptado como palco fixo (ou itinerante) em outras paragens.

Por falar em mobilidades cênicas, as jornadas de junho de 2013 expuseram como o fenômeno artístico pode precipitar o que virá. A voz das ruas, digamos assim, ecoava havia anos em espetáculos norteados pela cultura hip hop ou pelo caráter manifesto em que a enunciação produz dialética. A ingerência normativa sobre o espaço público, a regra da gentrificação e os abusos da especulação imobiliária foram outras temáticas mapeadas.

O teatro acontece no espaço do político, o que lhe é inerente, independente do lócus ou de ideologia, pondera Denis Guénoun. Os 12 anos de vigência do Fomento viram multiplicar essa dimensão em sua força inventiva e contundência crítica. Artistas-pesquisadores debruçados sobre as técnicas e o pensamento de Bertolt Brecht e Augusto Boal, dois ícones, avançaram a passos largos em direção a experimentos formais que tornaram seus discursos menos lineares do que poderia supor a militância artística ao apontar as contradições da sociedade. Ambos, como Vladimir Maiakovski, partilham da convicção de que novos temas, situações e problemas pedem novos conteúdos e novas formas.

Convergência que não impediu os dramaturgos e poetas Brecht e Maiakovski de contrastarem pouco tempo depois no quesito conteúdo, como observa Leandro Konder[3]. O primeiro, em suma, concebe o inteligível, o distanciamento sem margem para a ambiguidade dos sentimentos em estado “bruto”, mote comum na parabólica do segundo. Pois os diapasões brechtiano e maiakovskiano interpenetram-se na paisagem do Fomento, ressalvando propostas que soaram estanques pelo anacronismo da retórica da mensagem e esterilização da vontade de potência expressiva.

Em termos de disponibilidade, vide a celebração da cultura negra e a questão do racismo delineadas por coletivos cujas trajetórias vinculam identidade e ritualização sem ofuscar a teatralidade organizada através de signos, gestos, objetos e espacialidades corporais e vocais. Sincrônico e sintomático que o diretor Frank Castorf, do teatro alemão Volksbühne, tenha enxergado e problematizado o pendor racista na sociedade brasileira, de herança escravocata, ao tensionar Heiner Müller e Nelson Rodrigues numa adaptação/apropriação da peça mítica Anjo negro[4].

Muitos conteúdos surgem materializados cenicamente sob a condição do precário, indicativo das realidades abordadas. O fazer artístico às vezes se deu em comunidades carentes de equipamentos públicos, e não só culturais. A estrutura presumida, no entanto, não impediu a transcendência, a interdisciplinaridade na acepção da dramaturgia expandida.

A livre formação embutida no trabalho dos grupos fomentados passou a contribuir para orientar e subsidiar artisticamente homens e mulheres que se aproximam do teatro pela via amadora, trilha que rendeu frutos históricos em inovação no período de transição para a fase moderna dos palcos brasileiros nas décadas de 1940 e 1950. Já no plano da pedagogia institucional, ficou clara a absorção natural de aprendizes da Escola Livre de Teatro de Santo André, município vizinho, ou da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, para citas dois espaços irradiadores. Os formandos ora lançaram na capital novos grupos ora foram agregados a outros, sempre sob a égide da experimentação.

Notamos arranjos e rearranjos de um teatro em comunidade em que a filosofia laboratorial é inescapável. A inquietude estética decorre das situações à flor da pele vivenciadas pelo grupo no seio ou no entorno de sua sede de treinamento e pesquisa, quando for o caso. Pontos de vista documentais ou autoficcionais serviram para mediar memórias pessoais e, principalmente, coletivas. Fronteiras foram relativizadas na cohabitação artística em albergue, escola, hospital e áreas que concentram população vulnerável às drogas. A modalidade da residência, por sua vez, surpreendeu quando se respeitou o estatuto da arte, convivência conquistada numa vila operária ou em teatro distrital.

O desafio de transitar o calor cultural e a subsistência em regiões descobertas da presença mais incisiva do Estado é não sucumbir ao assistencialismo em prejuízo da ambição formal – e ela não vem sem estudo, tentativa e erro. A proposição continuada da Lei de Fomento permitiu a alguns grupos ajustar essas demandas, inclusive provocando autocrítica junto a moradores que lhe eram mais próximos e acostumados a serem conduzidos em vez de conduzirem segundo seus pressupostos.

Conflitos do como viver junto acabaram se transformando em cenas ou temas de uma obra. Artistas inseridos nessa comunidade, seja morando ali ou não, também enfrentaram ambivalências quanto à quebra de expectativa ou sua tentativa de superação. A aurorreferência perpassou dramaturgias que confrontaram o espelho das visões românticas em torno do teatro de grupo, da despolitização ascendente e do arrefecimento dos encontros autogestados em que as questões objetivas da manutenção do trabalho não sucumbissem à esterilização das trocas conceituais e práticas, travando a relação política das formas.

No teatro para criança, a inserção no cômputo da lei apresentou saltos nos recortes e maneiras de contar histórias investindo em linguagem e temas tabus como a morte. Nas formas animadas houve processos que envolveram narrativas inclinadas ao espectador adulto e com a atuação bifurcada à manipulação de bonecos e objetos.

Para os próximos 12 anos de Programa de Fomento, vislumbramos no trabalho dos grupos um equilíbrio cada vez mais plausível entre as funções do diretor e do dramaturgo, pois este andou acanhado nos primeiros anos do período em xeque, sob a tônica dos procedimentos colaborativos. Da metade para cá, deparamos com autores mais insinuantes e argutos em seus escritos para a cena, independente se derivadas da sala de ensaio, improviso ou workshop. Sondamos a restauração do poder da palavra em consonância com polissemias espacial, acústica e imagética entranhadas no drama deste século que engatinha. E para isso é imprescindível que a técnica e o treinamento de voz alcancem atores meticulosos com a dicção, pontapé para falar de linguagem.

.:. Artigo publicado originalmente no livro Fomento ao teatro: 12 anos, organizado por Carlos Antonio Moreira Gomes e Marisabel Lessi de Mello (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 2014, p. 56-63).

[1] “Ao falarmos de percepção e memória, de um modo geral, e de filtros, seleções, recorrências, de modo mais específico, estamos desenhando parte de nosso diagrama do espaço da subjetividade”. Cecilia Almeida Salles, Redes da criação: construção da obra de arte (Vinhedo, Editora Horizonte, 2008), p. 83.

[2] “Aprender a ler e escrever já não é, pois, memorizar sílabas, palavras ou frases, mas refletir criticamente sobre o próprio processo de ler e escrever e sobre o profundo significado da linguagem. Assim como não é possível linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem o mundo a que se referem, a palavra humana é mais que um mero vocábulo – é palavração”. Paulo Freire, Ação cultural para a liberdade (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981), p. 39.

[3] “Brecht coloca o problema da forma em termos mais precisos e mais profundos do que Maiakovski, pois vê a forma em seu nível de significação histórico-social. A forma, para o teatrólogo alemão, é basicamente a estrutura, o gênero, e não o conjunto de artifícios estilísticos ou decorativos mobilizados por uma subjetividade isolada, por um ‘temperamento’. Para ele, não basta ‘renovar’ a forma do teatro tradicional e dar uma feição nova à estrutura arcaica: era preciso criar uma nova estrutura, um novo gênero, que – à falta de melhor designação – ele chamou de teatro épico. Em Brecht, a forma, analisada em seus elementos ‘intelectuais’ ou ‘racionais’, aparece em sua ligação dialética essencial com a problemática do conteúdo.” Leandro Konder, Os marxistas e a arte (São Paulo, Expressão Popular, 2013), p. 127.

[4] Entre 6 e 10 de novembro de 2006 o palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, recebeu Anjo negro de Nelson Rodrigues com a lembrança de uma revolução: A missão de Heiner Muller, espetáculo do encenador Frank Castorf que incorporou atores da companhia Filhos de Olorum, mais tarde coletivo Os Crespos.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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