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Crítica

Situacionismo cômico

12.12.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Mendes/Captura.Me

O nariz vermelho inseparável não deixa dúvidas sobre a filiação, mas as atrizes Paola Busatti e Vera Abbud fazem de Pelo cano uma prazerosa e bem dosada confluência da representação circense com elementos teatrais. Suas palhaças Emily e Manela são depositárias das figuras cômicas tradicionais acrescidas do toque performativo por aquelas que contam pelo menos mais de duas décadas de palco. O roteiro de malsucedidas e hilárias situações meticulosamente amarradas pela exímia dupla da escola do improviso – seus currículos dão o que falar nesses jogos – torna cristalino o quanto se leva a sério a brincadeira nesse espetáculo que completa dez anos em 2015.

Do embrião da cena curta de cerca de 15 minutos, em 2005, as criadoras aperfeiçoam o poder de unidade na sequência de quadros ou dos chamados números que fluem sem que o espectador se dê conta dos pontos de virada. Tampouco dão trela para o maniqueísmo branco versus augusto, a que comanda e a que se deixa comandar. O barato está no embaralhar tênue.

Cada uma exerce autonomia preservando a ponte, a relação, tomadas por certo situacionismo cômico com sutileza crítica (o consumismo ou à ditadura do corpo perfeito, por exemplo) extraída de momentos do cotidiano da mulher, da cidadã, da artista. Nem a cooptação feminista tem vez. A questão de gênero está dada nas entrelinhas, e não no discurso, pela óbvia condição de palhaças donas de códigos azeitados pela contracena longeva ou bifurcações em outros projetos de circo e de teatro.

Quando se diz discurso, ele advém mais da ação do que do verbo, este mais a ver com uma ou outra canção, como na passagem inicial em que a dupla portadora de asinhas e auréolas enquanto adereços tenta tocar viola e violino com deslize e destreza nada angelicais, para deleite de crianças, jovens e adultos, até que engata a impagável Por que te vas, a composição cafona do espanhol Jose Luis Perales. Executada ou presente na trilha, a música é aliada de primeira hora.

Assim como os objetos devidamente animados. Um sifão vira telefone e as reproduções de notas de cem reais são convertidas no “homenzinho azul” que se equilibra sobre um “arame” de fita crepe; a sobrevivência por um fio estampada no pecado capital. Já o tapume de fundo não está ali para enfeite e ganha múltiplas funções inventivas.

Esse despojamento depurado pode resumir o pensamento artístico de Emily e Manela, a alta e a baixa, cujas posturas e olhares transmitem o ridículo e o sublime das coisas miúdas com direito a uma pitada de melancolia e de sombra enlaçadas pelas luzinhas coloridas da ribalta.

:. Texto produzido para publicação a ser organizada pela Mostra Internacional de Teatro da Paraíba, a MIT PB, aqui. O jornalista viajou a convite da organização do festival.

Paola (Manela) e Vera (Emily, ao fundo)

Paola (Manela) e Vera (Emily, ao fundo)

Ficha técnica:
Criação, direção e atuação: Paola Musatti e Vera Abbud
Realização: Cia. Pelo Cano

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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