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Crítica

Uma translúcida jornada pelo teatro

4.12.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Mendes/Captura.Me

Deuses e fantasmas do teatro rondam o espetáculo Viagem aos campos de alfenim. Em sua primeira incursão pela dramaturgia, o diretor João Marcelino pede a bênção a Luigi Pirandello e a Fellini, para ficar em dois mestres das epifanias cênica e cinematográfica, ao revolver aspectos etéreos e divinos dos bastidores do teatro. A criação da Cia. A Máscara de Teatro, de Mossoró (RN), fala da perseverança ancestral dos artistas em sonhar e fazer por onde independente das tempestades emocionais, econômicas e existenciais que enfrentam para trazer à luz as “histórias que insistem em ser contadas”.

O projeto costura autores da dramaturgia universal às biografias dos artistas nele embarcados. A começar pelas bagagens de mais de três décadas de palco de Marcelino, bastante conhecido no Rio e em São Paulo pela concepção de figurinos, e de Tony Silva, cofundadora da companhia na vida real, em 1999, e primeira-atriz da companhia fictícia.

Na verdade, arma-se um mosaico em que cada ator interpreta uma pessoa com nome de apelo religioso e cuja razão de ser e existir se saberá mais adiante. E esta pessoa representará um segundo personagem, aí sim membro da trupe do roteiro, e que por sua vez se desdobrará em outros saídos das penas de Tchekhov, Lorca, Tennessee Williams, Shakespeare, Théophile Gautier e Homero, entre outros.

Assim, para o elenco formado por Tony Silva, Luciana Duarte, Jeyzon Leonardo e Damásio Costa correspondem os cidadãos Maria das Dores, Maria da Piedade, Pedro dos Anjos e João de Deus. E seus respectivos duplos artísticos com sobrenomes efusivos: Zuzú Chevalier, Pedro Paulo Strombole, Álvaro Montecristo e Aurora Valebranco. O quarteto dá vida à companhia teatral que peregrina por países como República Tcheca, Japão e Chile, disposta a concluir a turnê internacional na prometida localidade de Campos de Alfenim. Missão translúcida de quem ousa sobreviver no mundo repleto de regras insanas.

Há ainda um quinto personagem, Lauro Vívian, porém oculto, a quem todos reverenciam como um mestre em suas formações. Já um quinto ator, Leo Wagner, paira num segundo plano como narrador que resultará cumpridor de outra função-chave no desfecho surpreendente dessa aventura.

Cena da criação autoral da Cia. A Máscara de Teatro

Marcelino tem uma dramaturgia inspirada nas mãos, mas precisa editá-la. O teatro do mundo é uma bela imagem que não necessariamente se materializará em quase duas horas ou em duzentas. Do arco das três batidas de Molière no tablado até o blecaute final não é difícil identificar os ajustes a serem feitos em falas, dicções e deslocamentos no tempo e no espaço da encenação e das subnarrativas. Falta incisão ao diretor sobre o corpus poético que moldou.

Viagem aos campos de alfenim (2014) traça uma espécie de elegia à arte da representação que nem sempre os intérpretes expõem com “fé e rito”, como diz a primeira-atriz da Cheriton Companhia de Teatro (intuímos a grafia assim), diante da multiplicidade de papeis e transições a que estão desafiados. Tony Silva, na pele da própria Aurora Valebranco, arrebata no solilóquio em que evoca Oscar Wilde e lamenta a glória que não veio, emendando a canção Dora, de Dorival Caymmi, num registro vocal de dar orgulho àquela que a imortalizou, Nana.

Os figurinos plausíveis e a cenografia funcional que Marcelino também assume (a última ao lado de Damásio Costa) compõem, junto com o desenho de luz de Ronaldo Costa, atmosferas que lembram tanto o onirismo do espírito mambembe da Commedia Dell’Arte como a densidade dos dramas do século 19. Particularmente, o carrinho retrátil que acolhe a todos o tempo inteiro, adquirindo vários formatos (vagão de trem, jipe, minipalco, cama) feito o tradicional origami japonês, exemplificando a síntese que a montagem ainda não emplaca na dramaturgia e nas atuações de potencialidades flagrantes e coroadas pela canção-tema Para onde os sonhos vão?, de Mariano Tavares, mais um encontro tocante da música com a cena.

.:. Texto produzido para publicação a ser organizada pela Mostra Internacional de Teatro da Paraíba, a MIT PB, aqui. O jornalista viajou a convite da organização do festival.

Ficha técnica:
Dramaturgia e direção: João Marcelino
Atuação: Tony Silva, Luciana Duarte, Jeyzon Leonardo, Damásio Costa e Leo Wagner
Desenho de Luz: Ronaldo Costa
Figurinos: João Marcelino
Cenário: Damásio Costa e João Marcelino
Canção-tema: Mariano Tavares
Preparação de atores: Carla Martins
Assistente de Direção: Leo Wagner
Produção: Cia. A Máscara de Teatro

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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