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Crítica

‘As criadas’: gestos tecidos com atitude

24.1.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ronaldo Gutierrez

Os atores mais calejados do Grupo Tapa são reconhecidos pelo primado da fala. O espectador senta na última fila do teatro e não importa: a dicção traz o colorido firme da palavra para além do que ela imprime. Em As criadas, essa virtude desfila junto com uma acentuada expressão de matriz gestual que valoriza o subtexto. Não se trata do gesto consignado ao corpo – como na dança, no teatro-dança –, mas à atitude farejadora dos inconscientes culturais presentes no drama de Jean Genet (Les bonnes).

As personagens Clara e Solange caem como luvas para Clara Carvalho e Denise Weinberg sob as ordens de Madame, interpretada por Emilia Rey. O triunvirato da escola Tapa de atuar constrói narrativa gestual precisa para dar conta das escavações da trama de fundo policial e expositiva do rancor ao outro a que se atribui o inferno.

Nos jogos de representação das irmãs que caçoam de sua antípoda na pirâmide social, o discurso do oprimido confunde-se com a manipulação de quem também destila a vingança e adoraria o lugar da outra, a Madame. É a crueldade sem fronteiras na troca de papeis: o de si mesma, o da irmã e o da patroa.

Genet rejeita o maniqueísmo. A peça triangula as máscaras sociais em especificidades humanas sem ceder à sedução fácil da disputa de classes em voga na França e na Europa do final da década de 1940, quando foi escrita. No Brasil continental de evidente mobilidade em sua estratificação secular, a horizontalidade do ódio soa mais plausível apesar da exploração escravocrata ainda perpétua nas relações de trabalho.

Em suas reinvenções do gesto pobre ou excessivamente belo, as empregadas ficam desobrigadas de qualquer convenção ao relatar os limites de sua morada miserável, o cubículo da mansarda, razão para inscrever outras formas despojadas em meio à fantasia da luxúria.

A submissão, o escárnio, a sordidez, a repulsa, a imprudência, a amabilidade e outras precipitações dissimuladas preenchem a corporeidade profana dos movimentos incisivos de Clara e Solange, nas horas convenientes e longe dos olhos da mulher que lhes é “boa”. Suas mãos bailam conforme o rito de ofensa ou sublimação.

Diante do espelho, colocando ou desfazendo-se do avental branco sobre a veste preta, subservientes ou soberanas, Weinberg e Carvalho cumprem partituras realçadas ou acuadas, como se o gesto dissesse por si mesmo, escutando os seus corpos calados. Corpos-cabides da extravagância dos tecidos e joias, dos status afetivos, dos escarros verbais do teatro íntimo que pactuam.

Quando constatam a tragédia prenunciada na outra margem da ficção que inventaram para si, as serviçais devotadas – principalmente a seus desejos e ao gozo invejado do leiteiro ou do doutor enamorado de Madame – destilam seus venenos e vão até as últimas consequências.

Há uma ética no caminho para o precipício em Clara, a mais nova, responsável pelo imbróglio detetivesco. Ela assume seus atos com coerência, não os transfere para a irmã diante das suspeições. A postura altiva e elegante na primeira cena, sob a pele de Madame, transforma-se em residual quando investida dela mesma na imagem martirizada ao final.

Clara Carvalho doma esse tobogã de registros vocais e gestuais ao sabor dos ventos emocionais da sua xará. O domínio técnico não ofusca a noção de rito. Fluxo que também é sustentado por Denise Weinberg, dona de enunciação extraordinária quer se faça de coitada ou de rogada. Composição memorável o solilóquio em que representa (em palavras) o estrangulamento da irmã no alto da escada.

Denise Weinberg (Solange) sobre Clara Carvalho (Clara)Ronaldo Gutierrez

Denise Weinberg (Solange) e Clara Carvalho (Clara)

A direção de Eduardo Tolentino de Araújo valoriza os contornos de uma cerimônia instaurada aos poucos pela clausura dos fatos. E sem abdicar do humor. O poder repousa absolutamente nas mãos das atrizes que conheceu como poucos ao longo dos 35 anos de grupo. É ele, afinal, quem as serve ao privilegiar suas danças no espaço cênico aberto e aparentemente despido de função – poderia ser tanto o quarto de Madame (como sugere o autor) como o sótão onde dormem.

Os objetos identificáveis estão subtraídos da cenografia de Marcela Donato. Genet coloca poeticamente na boca de Clara que os objetos também costumam abandonar os seus, traí-los. Já os espelhos de corpo inteiro aprofundam os tons confessional e passional, bem como devolvem ao público os efeitos da cumplicidade diante do vermelho imponente estendido do tablado à parede de fundo. Outro achado de Donato, dessa vez no figurino, é sintetizar o vestido com calda longa em tecido sem corte que as atrizes nos fazem ver de alta-costura em seus simulacros.

No conjunto da encenação, Tolentino se revela formalmente correto, cabendo pontuar dois momentos inspirados. No primeiro, a personagem desponta subindo os seis degraus de uma escada em espiral que desliza sobre rodas, em giro, e expõe a metáfora perfeita da ascensão social. Na segunda, Madame escapole à la Brecht para ir de encontro ao amante libertado da prisão. Emilia Rey então desce do palco, atravessa o corredor da plateia e se esvai pelas portas de fundo, em grande estilo.

Como se não bastasse o papel das irmãs unha e carne na metalinguagem, Clara Carvalho e Denise Weinberg são elas mesmas cúmplices nos fracassos e vitórias da profissão que abraçaram. Essa sintonia vaza para a cena e faz d’As criadas delas e de Emilia Rey e de Eduardo Tolentino um símbolo da própria relação do Tapa com essa arte: a luta permanente para não se vergar e reagir. Criar, criar e criar.

O retorno à casa que ocupou por 15 anos (1986-2001) está à altura desse desafio, mas há um deslize: o programa de mediação entregue ao público na semana de estreia, um folheto com raquíticas informações. Aos 50 anos, o Teatro Aliança Francesa não ousou produzir um documento digno desse momento histórico em que o Tapa levará ali duas obras consecutivas de Jean Genet – a próxima é a inédita Esplêndidos. Ou, talvez, em que medida o próprio grupo não se impôs essa iniciativa. Curiosamente, na noite de pré-estreia o crítico José Cetra subiu ao palco cinquentenário brandindo programas raros de obras que ali assistiu, como O tempo e os Conways, abre-alas da mudança do Tapa para São Paulo há 28 anos.

Serviço:
Onde: Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3017 5699, ramal 5602). Quando: Quinta a sábado, às 20h30; domingo, às 19h. Até 15/3.
Quanto: R$ 20.

As atrizes Emilia Rey, Clara Carvalho e Denise WeinbergRonaldo Gutierrez

Emilia Rey, Clara Carvalho e Denise Weinberg

Ficha técnica:
Autor: Jean Genet
Tradução: Pina Coco
Diretor: Eduardo Tolentino de Araújo
Com: Clara Carvalho, Denise Weinberg e Emilia Rey
Cenografia e figurinos: Marcela Donato
Iluminação: Nelson Ferreira
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Assessoria de imprensa: Fabio Camara
Administração: Cesar Baccan
Realização: Grupo Tapa

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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