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Crítica

Fluxos e contrações

15.3.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ligia Jardim

Ao deslocar o referencial dramático dos protagonistas para a coadjuvante, os criadores de Senhorita Julia não apenas reelaboram no texto o lugar da criada, valorizando o monólogo interior sem macular as demais vozes, como estabelecem no palco um sistema global de fluxo de consciência apoiado por outros níveis narrativos de imagens, sons e espaços. A alteridade que brota dos sentimentos de Kristin coabita também o público observador das operações cênicas e cinematográficas conjugadas. Trata-se de um percurso de contrações da alma.

Convidados pela companhia alemã Schaubühne, os encenadores britânicos Katie Mitchell e Leo Warner são poética e tecnicamente meticulosos. Convertem a cena em quadro multiplano, como numa composição de sentidos pictóricos atravessada pelo teatro e pelo cinema.

Mas o suprassumo da experiência é cênico. O urdimento da sala está à vista. Contrarregras vestidos de preto manejam tripés, câmeras, refletores, paredes do cenário. A marcação ostensiva do início logo é incorporada. Os atores saem de suas tomadas e executam as mesmas funções de bastidores com os respectivos figurinos de época. Bastidores, aliás, é o que não há nessa montagem de cunho periscópico e plena em fusões.

No canto direito, dois técnicos cativam a audição para a sonoplastia ao vivo, como nos tempos do cinema mudo. Essa perspectiva artesanal incide ainda sobre a delicada correlação da subjetividade de Kristin com elementos da natureza (terra, fogo, ar e água) que pontuam pensamento e memória. Flores colhidas no jardim de uma vida mantida à espreita e refletida naquele dia de verão, quando as paredes, as portas e as janelas da cozinha e de outros cômodos da casa transpareceram o caso de seu companheiro com a filha do patrão.

Os conflitos sociais e políticos intrínsecos à peça de August Strindberg (1949-1912) ficam em baixo-relevo, apesar de perceptíveis nos diálogos de Jean e Julia. A adaptação centra no sujeito colateral, na capacidade de Kristin aferir o que está em jogo, a ponto de cochilar sob vigília, e mesmo assim dissimular suas sensações e aferra-se aos princípios morais, às convenções sociais, sublimando um eterno porvir. Postura diversa das personagens Mrs. Dalloway, do romance homônimo de Virginia Woolf, e Nora, da peça Casa de bonecas, de Henrik Ibsen – ambas reagiram à vida, cada uma a seu modo.

A atuação de Jule Böwe transmite no olhar e na fisionomia um misto de estados de sonho e de medo da vida por parte da criada, a indulgência paralisante, como expressa na imagem final que preenche a tela superior com seu rosto. Culmina no close o aparato audiovisual posto a serviço do espetáculo, salvaguardando-se a escala humana dos gestos. Há uma profunda simetria na grandeza dos demais atores e outros profissionais em multiplicarem suas possibilidades de presenças e deslocamentos, caso da violoncelista Chloe Miller. A musicalidade é outro dos enigmas sutis e pungentes da encenação.

Cena de 'Senhorita Julia', com atores da SchaubühneLigia Jardim

Cena de ‘Senhorita Julia’, com atores da Schaubühne

Em artigo de 1958, quando dava aulas em Porto Alegre, o diretor e crítico italiano Ruggero Jacobbi (1920-1981) anotou o seguinte trecho extraído do diário de Strindberg escrito na velhice, nos primórdios da técnica e da arte cinematográficas: “Que grande número de imagens luminosas é necessário tomar, no cinema, para se obter um movimento único, e apesar disso a imagem é ainda trêmula! Em cada vibração falta um intervalo. Se um milhar de imagens instantâneas é necessário para reconstruir um movimento de braços, quantos milhares serão indispensáveis para completar um movimento de alma!” A criação de Katie Mitchell e Leo Warner para a Schaubühne de fato perscruta a alma da coadjuvante e revela as pulsações vitais do clássico.

E, no panorama da 2ª MITsp, o entrecruzamento dessa versão com a de Julia, por Christiane Jatahy e Companhia Vértice, permite ponderar como as culturas de teatro e as realidades históricas dos países de origem (Alemanha, Inglaterra e Brasil) calçam as escolhas e convicções. Inscritas na contemporaneidade e profundamente inspiradas na linguagem do cinema, as duas produções, no entanto, evitam sucumbir suas teatralidades à poderosa visualidade da sétima arte. Antes, negociam sob códigos cênicos claros e essenciais, sem diluições de parte a parte.

.:. Publicado no âmbito da Prática da Crítica, uma das atividades da ação Olhares Críticos na 2ª MITsp, aqui.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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